A Casa Rosada, sede da Presidência da Argentina, em Buenos Aires, é uma imagem recorrente nos romances de Martín Kohan e de Nathan Englander| Foto: Antonio Costa/Gazeta do Povo
Nathan Englander, 38 anos, foi apontado pela revista The New Yorker como um dos 20 escritores mais promissores do século 21
Martín Kohan, 41 anos, considerado pela crítica como um dos mais importantes escritores da Argentina contemporânea

Se, em muitos casos, a história "esconde" e o jornalismo investigativo procura desvendar o que aconteceu e ainda ocorre, uma terceira margem neste rio do "conhecimento" se dá por meio da literatura. Escritores, via subjetividade, conseguem dar conta de jogar luzes sobre o que se quer "trevas". A Argentina, essa suposta conhecida e ao mesmo tempo desconhecida nação sul-americana, gerou dois romances desconcertantes, lançados este ano, por dois autores diversos. O argentino Martín Kohan e o norte-americano Nathan Englander escreveram, respectivamente, Ciências Morais e O Ministério de Casos Especiais.

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No caso do romancista argentino, a pátria ganhou uma metáfora: a inspetora María Teresa. Ela atua no tradicional Colégio Nacional de Buenos Aires, freqüentado desde muito pela elite local. Mas, durante o ano de 1982, a instituição mais se parece – na ficção de Kohan – com um "campo de concentração". E a protagonista demonstra uma incrível vocação para vigiar os alunos, com a finalidade de encontrar alguma irregularidade no comportamento que possa fazer com que os estudantes venham a ser punidos. "No nosso colégio, a prioridade absoluta é preservar devidamente a atmosfera de disciplina e concentração para o estudo".

A inspetora, que simboliza a Argentina, empreenderá uma série de ações para agradar o diretor – uma alusão aos países hegemônicos. María Teresa, em determinado momento, se esconde no banheiro masculino para flagrar algum aluno transgressor, mas acaba surpreendida – e estuprada – pelo diretor: "O gemido inaudito, a longa espera, a dor trespassada, o final sem desenlance". Então, a turbulência política muda a diretoria da escola, e até a inspetora é demitida. Mas o ex-diretor é contratado por uma montadora de automóveis francesa e requisitará os "serviços" da ex-inspetora. Para Kohan, é como se a Argentina sempre estivesse disponível para qualquer "solicitação" externa, mesmo que tenha de vigiar e punir, sistematicamente, seus alunos, ou melhor, seus filhos mais do que queridos.

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Judeus em Buenos Aires

O escritor judeu norte-americano Nathan Englander chamou a atenção do mundo literário ao ter recriado, por meio da ficção, o universo judaico nos contos aglutinados no livro Para Alívio dos Impulsos Insuportáveis, de 2007. Agora, volta a problematizar impasses judeus, mas usa como cenário (em vez de Nova Iorque) uma Buenos Aires da década de 1970 em meio aos anos de chumbo. O regime de Rafael Videla, militar que presidiu a Argentina entre 1976 e 1981, afetará – de maneira irreversível – a trajetória de uma família.

Kaddish é casado com Lillian. Ela atua em uma companhia de seguros. Ele, por sua vez, presta serviços à comunidade judaica: apaga das lápides de um antigo cemitério o nome de ancestrais não tão ilustres – cafetões e meretrizes – de então "pilares" da sociedade. Mas Kaddish não é respeitado pelo que faz. Ao contrário. É execrado, apesar de receber excelentes honorários. Subitamente, o filho do casal – o jovem Pato – se envolve com contracultura e é "raptado" pela polícia secreta do regime. O corpo de Pato, a exemplo de muitos jovens argentinos daquele período, desaparece sem deixar rastros.

A família se desintegra. E nenhum caminho, nem mesmo – e sobretudo – as fontes oficiais poderão recuperar o filho para sempre perdido. "Não tinha mais tempo a perder em delegacias. E não tentaria abrir caminho por meio do sistema. Sabia que não adiantava. Acreditar que a burocracia deles funcionava normalmente era como acreditar que o mundo era plano e o céu começava na sua borda. Não havia caminho reto. A burocracia na Argentina é redonda".

Kohan e Englander, mesmo por olhares e motivações diversas, constroem possibilidades e ainda descontroem essa miragem que parece ser uma Argentina que – apenas por meio da literatura – será possível mirar com alguma clareza. A Argentina (também) é uma ficção.

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Serviço

Ciências Morais. Martín Kohan. Companhia das Letras. 190 págs. R$ 26,60. O Ministério de Casos Especiais. Nathan Englander. Rocco. 440 págs. R$ 40,70.