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O episódio se passa no fim da década de 70, mas poderia muito bem se desenrolar nos dias de hoje. Jô (Lucélia Santos), uma jovem universitária que, contra a vontade do pai, um migrante nordestino conservador e machista, sonha ser mulher independente, descobre-se grávida. O pior de tudo é que o namorado, Jorginho (Fábio Jr.), é um rapaz de classe média, cuja família mora no prédio onde o futuro avô do bebê é porteiro. Desesperada, Jô acha que é cedo para ser mãe – quer se formar, arrumar emprego e também não tem a menor intenção de forçar Jorginho a assumir uma paternidade fora de hora. A única alternativa que encontra é o aborto.

Como não tem mãe e o pai não pode sequer saber da gravidez, Jô pede ajuda a sua melhor amiga, a socióloga Malu (Regina Duarte), uma mulher recém-descasada de 30 e poucos anos que vive com a filha Elisa (Narjara Turetta) no mesmo edifício. Embora Malu tente convencer a estudante de que, mesmo optando por ter a criança, não seria impossível concretizar seus planos de vida, Jô está irredutível. Diante dessa postura, resta à amiga apoiá-la e acompanhá-la a uma clínica clandestina, onde o procedimento é realizado com a rapidez de uma extração dentária e a impessoalidade de uma operação bancária.

Aborto, preconceito de classes e, é claro, questões feministas estão entre os temas abordados em um único episódio de Malu Mulher, uma série que, em tempos de comédias ligeiras e sem maior conteúdo reflexivo como A Diarista e Sob Nova Direção, parece cinema de arte. Dez capitulos do programa, um dos mais revolucionários na história da televisão brasileira, foram reunidos em um DVD duplo, já à venda no mercado brasileiro. É a oportunidade para constatar que a tevê aberta brasileira já viveu dias melhores.

Quando Malu Mulher foi lançada – simultaneamente às séries Plantão de Polícia (com Hugo Carvana) e Carga Pesada –, a lei do divórcio tinha sido aprovada havia menos de dois anos e o número de separações conjugais escalava no Brasil. Surgia na sociedade uma mulher que questionava o casamento fracassado, o comodismo do "lar doce lar", e buscava independência financeira e emocional.

Por outro lado, a censura do governo militar começava a dar sinais de arrefecimento. Nesse contexto, o então todo-poderoso Daniel Filho (hoje mais dedicado ao cinema) criou o programa, exibido semanalmente na Rede Globo entre maio de 1979 e dezembro de 1980.

A paulistana Malu, no entanto, incomodou muita gente, que enxergou subversão e leviandade em sua escolha de dar fim a um casamento de 13 anos, aparentemente estável, em nome de um valor ainda pouco em voga entre as mulheres da classe média brasileira à época: a busca pela felicidade e satisfação pessoal.

O argumento da série era inédito na televisão, sem dúvida, mas o programa não se limitou a apenas discutir a questão da emancipação feminina. Cada um dos 76 capítulos trazia temas jamais discutidos anteriormente em horário nobre da tevê de forma tão escancarada: orgasmo, homossexualismo, infidelidade, aborto, virgindade, violência doméstica e menstruação, entre outros. Os textos eram assinados por Manoel Carlos (Páginas da Vida), Euclydes Marinho (Desejos de Mulher) e Renata Palottini (hoje professora da USP), entre outros autores.

Ao assistir aos dez episódios de Malu Mulher, incluídos no DVD mais de um quarto de século depois de terem ido ao ar, é inevitável constatar que a televisão brasileira, de uma certa forma, regrediu. Embora não apresente o "padrão Globo de qualidade técnica" de hoje em dia, a série compensa suas limitações com uma surpreendente coragem na escolha dos temas, discutidos de forma adulta, sem subestimar a inteligência do espectador. Os diálogos, todos muito longos e realistas comparados ao que se vê hoje em dia, dão a sensação de intimidade sem cair nas armadilhas da introspecção excessiva.

Como na época não existia a concorrência da TV paga, os canais abertos também se preocupavam em atingir uma audiência mais qualificada e pensante. E todos saiam ganhando.

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