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 | Ilustração: Ricardo Humberto
| Foto: Ilustração: Ricardo Humberto

"Talvez as coisas não tenham grande sentido"

Ao perceber a dimensão do acaso no rumo da vida, o indivíduo pode ter dois tipos de reações. Uma, como se o acaso fosse a evidência necessária para viver angustiado. A outra, experiência mais difícil de ocorrer, é uma re­­lativa despreocupação com a busca por um sentido na vida. "É uma forma de libertação", diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, autor de Contra um Mundo Melhor – Ensaios do Afeto (Leya).

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Acreditar no destino talvez seja um meio de evitar a insanidade. De que forma viver aceitando que as coisas podem acontecer como também podem não acontecer e que o controle sobre elas é ne­­nhum, ou quase isso?Buscamos qualquer outra coisa que dê sentido à existência, daí também a crença nos poderes do indivíduo sobre a própria sorte. Uma ideia assimilada pela maioria: alguém atinge o sucesso por causa de talento, inteligência e trabalho.

Veja o desfecho de Megamente, uma animação para crianças exibida nos cinemas. O filme defende nuances e diz que ninguém é totalmente ruim ou bom. No desfecho, o supervilão do título tasca a conclusão: "Destino é aquilo que você escolhe para si". É uma bela frase de efeito, mas, na prática, não funciona bem assim.

Nietzsche, senhor das frases de efeito, afirmou algo parecido quando escreveu, em A Gaia Ciência (Companhia das Letras): "Nenhum vencedor acredita no acaso".

Agora, rebatendo Nietzsche e Megamente, estudos de várias áreas do conhecimento, ainda mais da Matemática e da Sociologia, são citados por escritores como Leonard Mlodinow e Malcolm Gladwell para argumentar que os vencedores têm, sim, uma boa ajuda do acaso. Narrar histórias que ilustram essa nova forma de enxergar o êxito profissional anima Gladwell nos livros Fora de Série e O Que Se Passa na Cabeça dos Cachorros (ambos publicados pela Sextante).

O jornalista da revista The New Yorker mostra, num dos textos, como que nascer nos primeiros meses do ano pode ser determinante à carreira de um atleta profissional no Canadá; explica por que os orientais são melhores matemáticos do que os ocidentais e analisa o quanto uma etnia é capaz de atrapalhar o desempenho de um piloto profissional de aeronaves.

Oportunidades

É certo que os fatores externos não são dominantes, porém, sem eles, mesmo alguém talentoso e esforçado pode dar em nada. "Realizações extraordinárias resultam mais das oportunidades do que do talento", escreve Gladwell em Fora de Série. A palavra "oportunidades" poderia ser tranquilamente substituída por outra: acaso.

O acaso não costuma ser lembrado em histórias de sucesso profissional, mas, com frequência, aparece em narrativas sentimentais. É incomum ouvir alguém dizer que se casou depois de anos trabalhando para convencer a noiva. As histórias de amor preferem os episódios em que um fato banal acaba unindo duas pessoas para sempre – um encontro casual, um acidente de percurso.

O escritor Philip Roth, no ro­­mance Nemesis (2010, inédito no Brasil), cunhou uma expressão para definir de uma vez por todas o poder absoluto dos eventos que oprimem o indivíduo que os experimenta: "a tirania da contingência". Ninguém escapa dela.

Crente

"Eu acredito em acaso", diz Gladwell, em entrevista por telefone. "Acho que ele pode desempenhar um papel importante na vida das pessoas. Eu mesmo passei a escrever por acaso. Havia acabado de chegar a Washington e fui morar num apartamento que eu dividia com um amigo e a maioria dos contatos que esse amigo tinha na cidade era no meio jornalístico. Quando fui procurar um emprego, acabei encarando a função de jornalista."

Crer no acaso, na aleatoriedade dos eventos, não tem nada a ver com destino. Embora eles apareçam como sinônimos em certas situações – dicionários inclusive –, destino está relacionado àquilo que acontece ou acontecerá independentemente dos seus esforços. Por isso gostam de dizer que o destino está escrito. O acaso é menos dramático. É imprevisível, tem a ver com sorte, não é lógico nem racional – ou não costumava ser, até a ciência se ocupar dele.

Lógica do acaso

O físico Leonard Mlodinow fez um livro original compilando teorias e pesquisas acerca da aleatoriedade e o chamou de O Andar do Bêbado (Zahar). O cientista trata dos "princípios que governam o acaso".

Respondendo perguntas por telefone, Mlodinow diz que as pessoas podem se beneficiar da ideia de aleatoriedade por saber que sua sorte, com certeza, vai mudar. Ainda que isso leve tempo. Ele cita Thomas Watson, executivo da IBM e uma das referências usadas no livro: "Se você quiser ser bem-sucedido, duplique sua taxa de fracassos".

Acreditar num destino predeterminado é diferente de crer no poder de moldar o próprio destino, mas essas duas visões têm em comum a ignorância em relação ao acaso.

Mlodinow e Gladwell não acreditam em destino.

Significado oculto

"O erro que nós cometemos com frequência é o de tentar interpretar todos os acontecimentos como eventos com um significado oculto, como se tudo fizesse parte de um todo inevitável. Como se tudo tivesse uma razão", diz Gladwell. "Talvez seja uma necessidade das pessoas. Nós narramos os acontecimentos de nossas vidas para nós mesmos como se eles estivessem amarrados, relacionados. E acho que isso não funciona assim."

Mlodinow diz acreditar em talento e sorte. "O cérebro evolui assim como nossa maneira de avaliar as coisas", diz. "Certas intuições eram muito úteis na vida selvagem, mas, hoje, os erros que cometemos são de outro tipo. Nosso ambiente mudou e o cérebro não teve tempo de acompanhar a mudança." O que Mlodinow diz é que aceitar a aleatoriedade hoje não parece natural para o ser humano.

"A tentação de acreditar que você ou outras pessoas são responsáveis por eventos aleatórios é tão forte que psicólogos criaram um termo para ela: a ilusão de controle", argumentou Mlodinow em ensaio publicado na imprensa californiana. É, enfim, uma questão de ego. De acordo com o físico, "gostamos de acreditar no nosso próprio poder".

Lógica

É mais fácil pensar que uma lógica qualquer, sobrenatural ou terrena, rege os acontecimentos da vida quando se olha para trás. Pegue a história de Mark Zuckerberg, o guri que criou o Facebook, contada no filme A Rede Social, de David Fincher.

Zuckerberg levou um fora da namorada, afundou as mágoas na cerveja e num programa besta que permitia comparar os atributos físicos das garotas da universidade – um sucesso instantâneo entre os estudantes. Foi o começo. Pouco depois, um trio de alunos disposto a criar uma rede social exclusiva dentro de Harvard decidiu chamar Zuckerberg para fazer a programação da página. Ele aceitou, mas preferiu tocar a ideia por conta própria. Seu colega de quarto, Eduardo Saverin, tinha o dinheiro necessário para colocar o projeto do Facebook em marcha.

Agora, que tudo já passou, parece que a criação do Facebook foi "obra do destino": o fora, a vingança e o convite. Sem mencionar o fato de estar em Harvard, ou de ter nascido nos Estados Unidos. Ou de ter menos de 30 anos. Todas essas são questões abordadas por Gladwell quando lembra a revolução engendrada no Vale do Silício por Bill Gates, Steve Jobs e outros técnicos.

Perseverança

As ideias destrinchadas por Gladwell e Mlodinow são complementares em certos aspectos. O jornalista mostra como o acaso é determinante nas proezas que a maioria costuma explicar apenas com talento e trabalho. O físico argumenta que, apesar da aleatoriedade dos acontecimentos, é possível bater o acaso e lidar com as incertezas usando perseverança, insistindo até não aguentar mais.

Mlodinow cita Bruce Willis de exemplo. O ator Duro de Matar, hoje com 55 anos, teve um começo de carreira difícil, trabalhando como bartender em Los Angeles na primeira metade dos anos 1980 enquanto amargava papéis ruins.

Depois de penar muito, conseguiu ser escolhido para fazer David Addison Jr. na série de televisão A Gata e o Rato (1985-89), ao lado da atriz Cybill Shepherd. Willis só conseguiu o contrato porque viajou a Los Angeles para ver as Olímpiadas e, aproveitando que estava na cidade, fez testes indicados por um agente.

O ator serviu de estepe para os executivos que não o queriam na produção, mas não tinham tempo nem condições de procurar um protagonista "melhor". Não bastassem esses atropelos, a primeira temporada do seriado teve uma recepção fria do público. Quer dizer, mesmo conquistando um papel decente pela primeira vez na carreira, ele só foi fazer sucesso no segundo ano da produção. Tinha 31 anos e bateu a cabeça por pelo menos uma década.

Mlodinow cita também J.K. Rowling, a escritora que criou Harry Potter, e ouviu "não" de nove editoras até encontrar uma que publicasse a série do menino bruxo. De acordo com o físico, existem muitos talentos parecidos com Willis e Rowling, tão capazes quanto os dois, mas que nunca serão conhecidos porque desistem antes que o acaso dê uma mão.

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