Letra da música
Veja a letra original e a versão em português de "Strange Fruit":
"Southern trees bear a strange fruit,/Blood on the leaves and blood at the root,/Black bodies swinging in the southern breeze,/Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,/The bulging eyes and the twisted mouth,/Scent of magnolias, sweet and fresh,/Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,/For the rain to gather, for the wind to suck,/For the sun to rot, for the trees to drop,/Here is a strange and bitter crop."
Versão poética de Carlos Rennó
"Árvores do Sul dão uma fruta estranha./Folha ou raiz em sangue se banha,/Corpo negro balançando, lento,/Fruta pendendo de um galho ao vento.
Cena pastoril do Sul celebrado./A boca torta e o olho inchado./Cheiro de magnólia chega e passa./De repente o odor de carne em brasa.
Eis uma fruta para que o vento sugue,/Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,/Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,/Eis uma estranha e amarga fruta."
O nome da canção: "Strange Fruit". E são estranhos os frutos: negros linchados pendurados em árvores. A música foi inspirada por uma foto de 1930 que mostra dois "homens de cor," com o corpo e a roupa despedaçados e uma corda no pescoço, pendendo de galhos sobre uma multidão de brancos em clima de festa: jovens namorando, velhas mexericando e um homem de pele alvíssima, com bigodinho de Hitler, apontando acusadoramente para um dos mortos. Ironicamente, o flagrante foi feito em Marion, Indiana, embora os mais de 5.000 linchamentos documentados nos Estados Unidos entre 1930 e 1960 fossem cometidos no Sul do país.
A foto teve repercussão imediata e obrigou seu autor, Lawrence Beitler, a trabalhar dez dias e noites fazendo cópias para jornais e revistas do mundo inteiro. Ela inspirou o verso inicial de "Desolation Row", de Bob Dylan: "Estão vendendo cartões postais dos enforcados." Mas o efeito mais profundo e duradouro da imagem foi um poema, "Bitter Fruit" (Fruto amargo), publicado em 1938 numa revista marxista por Abel Meeropol, um professor judeu e comunista do Bronx, Nova York.
Depois de musicar o poema com o pseudônimo de Lewis Allan (nome de seus dois filhos natimortos), Meeropol procurou Billie Holiday para interpretar a canção, "Strange Fruit", no Café Society um clube de jazz progressista onde ela iniciava temporada em dezembro de 1938. Esta história é contada detalhadamente no livro que o jornalista David Margolick publicou em 2000 e agora chega ao Brasil pela Cosac Naify, Strange Fruit Billie Holiday e a Biografia de uma Canção.
O triunfo de "Strange Fruit" é uma síntese de vários fatores: a ideologia de Meeropol somada ao carisma de Billie Holiday, mas também a ousadia de Barney Josephson, dono do Café Society, que apresentou a canção em público, e de Milt Gabler, dono do selo independente Commodore, que a lançou em disco logo depois. (Gravadoras mais poderosas, como a Columbia que tinha Billie no seu elenco recearam ofender o público conservador com uma canção tão subversiva.)
Billie teria ficado surpresa com a proposta de Meeropol. "Strange Fruit" não era uma canção no estilo popular da época, mas uma espécie de drama musicado que tinha o linchamento como tema. Exigia a atenção total da plateia e parecia um número improvável para um cabaré de jazz. Mas o Café Society era diferente: ali brancos e negros se confraternizavam, bacanas e dondocas eram ridicularizados, e a maior parte da clientela era esquerdista: "Os porteiros usavam trapos, luvas brancas esfarrapadas, e ficavam parados enquanto os clientes abriam as portas eles mesmos; os garçons eram todos veteranos da Guerra Civil Espanhola".
Billie era leitora de romances baratos e muitos achavam que não tinha a sensibilidade para entender e interpretar a canção. Tinha 24 anos e 13 dias quando "Strange Fruit" foi gravada, em 20 de abril de 1939. Pouca idade para uma estrela, mas Billie já cantava profissionalmente havia dez anos. Pode-se dizer que foi "Strange Fruit" que a elevou ao estrelato e ela se apossou da canção como se houvesse saído de suas entranhas. Em sua autobiografia de 1956, Lady Sings the Blues, Billie dá a impressão de que, mais do que intérprete, foi a autora da canção.
Quando Josh White começou a cantar "Strange Fruit", ela invadiu seu camarim e botou literalmente uma faca no seu pescoço para que não invadisse aquele território sagrado. Josh argumentou que quanto mais gente cantasse "Strange Fruit", melhor seria. Billie concordou e ficaram amigos para sempre. Billie cantava "Strange Fruit" sempre no final da noite, no escuro, seu rosto iluminado apenas por um pequeno refletor. Retirava-se depois dos aplausos e não voltava mais.
A cantora Sylvia Sims resumiu a experiência: "Tudo o que se via era aquele rosto incrível num foco de luz que hipnotizava inteiramente a plateia, do momento em que ela entrava em cena até o momento em que saía. Via-se o mundo naquele rosto, tudo o que era humano, tudo o que era vivo, toda a beleza e desgraça da vida."
Elijah Wald, biógrafo de Josh White, disse: "Quando Josh canta, você sente que está presenciando uma grande apresentação. Quando Billie canta, você sente que está ao pé da árvore". Comenta Margolick: "A comparação traz à mente o que o clarinetista Tony Scott disse uma vez de Holiday e da outra primeira-dama do canto, Ella Fitzgerald: Com uma cantora como Ella, quando ela canta meu homem me deixou, você pensa que o sujeito foi à rua comprar pão. Mas quando Lady canta, você vê as malas feitas, o carro partindo na rua, e você sabe que ele não vai voltar nunca mais!"
Em 1999, a revista Time apontou "Strange Fruit" como "A Canção do Século". Sessenta anos antes, quando saiu a gravação, a mesma revista a havia chamado de "uma peça de propaganda musical." Quando Billie adotou "Strange Fruit", sua mãe perguntou por que ela cantava aquilo. "Pode ajudar a melhorar as coisas," respondeu Billie. "Mas você vai estar morta," disse a mãe. Billie replicou: "Mas vou sentir quando acontecer. Vou saber no meu túmulo". Billie tinha razão: desde sua morte, há 53 anos, vem recebendo no túmulo muitas notícias de mudanças no seu país, que hoje tem um negro na Casa Branca.
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