É evidente que o jornalista da Gazeta do Povo Guilherme Voitch não conhece a cena musical da cidade em que vive. Não é de hoje que canções brilhantes, com capacidade de vigorar em qualquer antologia do melhor que há na música brasileira são compostas por esta gente, como ele diz, "periférica". Aproprio-me do texto A estética do Frio, de Vitor Ramil, para afirmar que não somos periféricos, mas o centro de uma outra história. Voitch se incomoda que "caras de banda", jornalistas culturais, donos de bares e meia dúzia de outros personagens estejam tentando com muita dedicação mudar um pensamento e uma prática tipicamente autofágica, de raiz certamente fascista que se apresenta como herança, para o gozo de alguns, e maldição, para muitos de nós os envolvidos que vem metendo a mão na massa. O que ele prefere, que continuemos nos engalfinhando por aqui, querendo a morte artística do outro? Ele prefere que nos acomodemos, calemos a boca e aceitemos uma condição submissa e de inferioridade diante do que ele supõe seja a "realidade" que, parece ser sua opinião, está apenas na história daqueles que atingiram ou o sucesso ou a fama, ou os dois.

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A criação de canções populares, por suas vez, não tem por obrigação atender tais exigências, sejam de mercado, sucesso ou fama. Antes de mais nada, ela é manifestação das culturas, surge da manutenção da expressão, crie identificação ou não, regional, para só então vir a se universalizar. A música folclórica é exemplo óbvio disso. Porém, mesmo o rock dos Stones, que entenderam lidar com matrizes do blues americano tradicional fosse caminho, e a bossa de João Gilberto, cuja fonte é o samba, segundo cansou de afirmar o próprio João, passaram por aí, pelo regionalismo. A ignorância do jornalista, de qualquer modo, primeiro o faz atacar a cena artística da cidade como um todo, depois, estrabicamente não o permite enxergar que muitos de Curitiba são nos dias que correm reconhecidos nacional e internacionalmente, na música, na literatura, no teatro, nas artes visuais, no cinema. Apenas para ilustrá-lo, rapidamente cito um exemplo apenas de cada (não que não haja muitos outros): Karol Conká, música; Cristovão Tezza, literatura; Companhia brasileira, teatro; Rimon Guimarães, artes visuais; Marcos Jorge, cinema. No caso específico da canção A gente não tá de brincadeira (e não "Não Estamos para Brincadeira", como está no texto da Gazeta), fique claro se tratar de um ato poético celebrativo em homenagem ao que vem sendo feito por aqui.

O direito que França se arroga está, dadas as proporções, em intenção semelhante ao de Chico Buarque quando compõe Paratodos e apresenta sua genealogia pessoal da música brasileira. Ou mesmo de acordo com o que querem Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves com sua parceria O samba é meu dom. Tributo aos mestres, comunhão com os fazedores do agora. Ainda, à guisa da contradição: qual geração musical incomodou avós e sobrinhas de 14 anos? Ao contrário, muito mais do que incomodar, a música desde Elvis, ou no Brasil a Tropicália (a mais transgressora em termos de costumes) sempre arrebatou as jovens meninas. E as avós nunca deixaram de adorar uma boa canção de relembranças de sua época de moças. Adoram até hoje, porque a canção popular se destaca na cultura brasileira, aquela acompanha esta na mesma velocidade, costurando por dentro do som a história de nosso país. Pode que incomode, como incomodaram no passado, isso sim, esquisitos patrulhadores como ele. Aliás, estas avós e adolescentes que o jornalista tenta usar como suas cúmplices sequer existem, não passam de projeções de seu próprio preconceito.

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Voitch, em seu ato implicante, escreve como se tivesse bola de cristal capaz de enxergar histórias privadas e o efeito imediato que elas pudessem causar, como se a apreciação e digestão de qualquer obra culturalmente não dependesse, necessariamente, do tempo; e mais, como se não pudéssemos considerar, como escreveu Harold Bloom, mesmo Shakespeare um nosso contemporâneo – pois como se inscrevem as obras ao longo da História, senão com o eterno retorno de suas apreciações? Nas palavras do teórico e compositor Arthur Nestrovski: A música não é só para ser lida, mas as canções lidas, tanto quanto ouvidas, essas ficarão. Daí que a matéria de Voitch é só redutora e simplista. No mais, por que não deveríamos admirar e trazer para perto a experiência e o pensamento de Paulo Leminski, se ele nos ensinou tanto, se ele era sim um amante de Curitiba, se ele elevou o nome desta cidade, se sua luta foi explodir com toda a babaquice de nos considerarmos província? Se ele é, em última análise, um ótimo exemplo? E mais, tantas vezes injustiçado por visões demasiado semelhantes a esta do jornalista da Gazeta.

Diante do fato, a feitura da canção A gente não ta de brincadeira e toda a polêmica que gerou, a Quadra Cultural, os movimentos feitos na Casinha do Felix Bravo, o Pré-Carnaval do Largo da Ordem, para citar o mínimo, fica claro que, ao contrário do que perversamente o jornalista tenta fazer acreditar, a cena não está domesticada, tampouco é constituída por um "bom mocismo", termo este emprestado pela mídia impressa de São Paulo ao se referir, na época, há dois ou três anos, a alguns nomes de lá, onde, possivelmente, segundo pensa Voitch, está, talvez, a "realidade". Vai ver por isso diz que existe ao menos um milagre, que se daria "quando algum nome consegue emergir desse caldeirão de mediocridade pelo talento e se conectar com o mundo real". Que mundo real será esse a que ele se refere? O da grande mídia? O dos contratos com gravadoras? Ir morar no "eixo" e ser não alguém bem nutrido por lá? Por que Curitiba não é real para este jornalista? Então o seu exercício profissional por aqui de anos e anos é apenas sua grande ilusão? Além disso, se Voitch deu-se ao trabalho de escrever sobre o cenário, que para ele é irrelevante, por que então se deu ao trabalho? Gostava ele será de se comparar ao menos com os medíocres, já que sua invisibilidade até então era das mais invisíveis, mesmo ele escrevendo no maior jornal do Paraná, enquanto que os artistas da cidade têm se virado muito bem, alternativamente construindo seus próprios espaços, que são, por excelência democráticos.

Justiça seja feita, nem todo jornalismo cultural da cidade age desse modo caranguejo que, ao atacar também os seus colegas de profissão, inevitavelmente ataca um dos melhores profissionais da área, também da Gazeta do Povo, Luiz Claudio Soares De Oliveira. E mesmo as posturas, nunca de um bom mocismo, mas ponderadas e justas, de Cristiano Castilho. Ou o tipo de abordagem francamente agitada e crítica, mas nunca ingênua, de Sandro Moser. Pois é, Voitch se incomoda que a cena local seja bem nutrida, talvez porque ele preferisse que todos por aqui fossem verdadeiros mendigos mortos de fome. Assim ele toma partido (será que inconscientemente?) de um certo tipo de preconceito que diante de episódios como o espancamento dos Garibaldis e Sacis pela polícia diz "é isso mesmo, bando de vagabundos que não tem mais o que fazer, vão trabalhar em vez de fazer baderna", ou apoiando a minoria que gostaria de ver aniquilado o projeto da Quadra Cultural, capitaneado por Arlindo d´O Torto Bar.

Como escrevi em recente texto: é bastante óbvio que estamos lutando (e vencendo) contra uma invisibilidade histórica, com a qual a típica e elogiada autofagia (que tem este nome, mas no fundo é só ignorância mesmo) de alguns de nossa gente certamente contribuiu até a náusea, e que muito bem diagnosticou Jamil Snege em seu livro de crônicas Como ser invisível em Curitiba. Daí que, talvez de algum modo tortuoso, devêssemos agradecer Voitch e sua tentativa pública de puxar o tapete, assim ao menos sabemos bem contra que tipo de pensamento brigamos, o que nos dá mais forças para seguir ao alto e avante, com fé em nosso taco enquanto cena. Ao menos (por mais que sua intenção seja irônica – mas vale o signo) admite haver gênios por aqui. De todo modo, numa discussão entre protagonistas, vir à luz a fala coadjuvante deste jornalista mostra a carência dele (a mesma que quer responsabilizada naqueles que chama de gênios). A cena local, por sua vez (não só meu texto, como o espaço que obteve na Gazeta do Povo e os comentários sarcásticos de terceiros em sua página do Facebook), tem para com ele um ato de generosidade, pelo bem que, em sua fatalidade de destino, deseja a cena fazer por si mesma, e está fazendo. No mais, o que o jornalista chama de compadrio, eu chamo de comunhão.

Veja vídeo da canção que gerou o debate:

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