Curiosidade
O contexto histórico pode "deslocar" um espetáculo entre diferentes gêneros. O Mercador de Veneza, escrito por Shakespeare nos últimos anos do século 16, funcionava como uma comédia até o Holocausto, quando a fábula em o mesquinho Shylock, judeu, exige um pedaço da carne de um devedor que não honrou sua dívida, depois vê o jogo virar contra ele e é salvo pela graça da nobre Pórcia. Após os horrores da Segunda Guerra, a trama passou a ser considerada ofensiva e antissemita.
Público de stand-up em Curitiba é mais exigente
A julgar pela fama de conservador que o curitibano nutre, era de se imaginar que, por aqui, o show de humor, escrachado por definição, sofresse restrições. Não é assim, conforme conta Joca Madalosso, sócio-proprietário do bar Curitiba Comedy Club, que há quase três anos chama público com apresentações de stand-up. Pelo contrário, diz, aqui é onde os comediantes testam suas piadas novas. Se der certo, dará certo em qualquer cidade do país. "Quem vem sabe que é tudo piada. É raro reclamarem", diz. As críticas contra os shows de humor pegaram fogo depois que o ex-CQC Rafinha Bastos pegou pesado com o tema do estupro e irritou a cantora Wanessa Camargo. Os limites do humor são o tema do documentário O Riso dos Outros, de Pedro Arantes, que nesta semana rodou as redes sociais.
Assista
Veja o documentário O Riso dos Outros, de Pedro Arantes.
"Fazer rir é mais difícil do que fazer chorar." A máxima, utilizada por gente de teatro ligada à comédia, soa curiosa porque o gênero recebia valor menor entre os primeiros dramaturgos e encenadores, na Grécia Antiga. E não é raro também hoje o cômico ser desvalorizado em comparação com "peças sérias". O G Ideias deste sábado investiga a seguir essa contradição, a partir da experiência de encenadores e pesquisadores.
"Vejo na comédia os dois lados. Ela só existe por conta da tragédia", defende o diretor e ator Mauro Zanatta. "Para entendê-la é preciso transitar pela tragédia, e ela sempre envolve a desgraça de alguém, o preconceito contra o outro."
Um exemplo dessa união, citado pelo ator Otávio Linhares (em cartaz com o monólogo Saliva), é Esperando Godot, de Samuel Beckett, visto por muitos como um grito melancólico a respeito da condição humana, no contexto do pós-guerra. "É como Fim de Partida. São peças geniais e são comédias, não tragédias. Beckett defendia o clown, e via nele a tragédia do homem", diz Linhares.
Coincidentemente, foi Esperando Godot o ponto máximo da carreira de Zanatta na opinião do próprio, que estreou sua versão da peça em 2008 ao lado de Rosana Stavis. "Em meio à dramaturgia cômica, Beckett colocava sua crítica política", opina Linhares.
Unem-se, portanto, o "cômico" e o "sério", e outro excelente exemplo é Shakespeare. O próprio Hamlet, protagonista da peça considerada por muitos como a tragédia máxima do autor, já foi lido como um clown, menos melancólico do que jocoso, graças às tiradas que faz em meio à angústia dos solilóquios, fingindo-se de louco.
Talvez inspirado nessa multiplicidade do texto shakespeariano, o encenador Gabriel Villela vem extraindo humor de personagens como Ricardo III e até das três fantasmagóricas irmãs de Macbeth.
No caso do primeiro, o tratamento despudorado e jocoso dado a uma tragédia baseada num rei sanguinário em Sua Incelença, Ricardo III chocou parte da crítica. Estudiosa do bardo, a professora de Literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Liana Leão aprovou o resultado. "É uma tropicalização de Shakespeare. Recicla o texto, mistura arte popular, faz paralelismos entre a figura medieval e o cangaço brasileiro."
O grupo potiguar Clowns de Shakespeare, que estreou a montagem no Festival de Curitiba de 2011, entregou-se à chanchada por inteiro um dos requisitos apontados pelos especialistas para provocar o riso.
Exposição pessoal
"A comédia exige um grau de exposição pessoal muito grande do comediante. Ela só funciona quando existe uma comunicação direta com o público. E se o ator está resguardado, cuidadoso, não consegue provocar o riso", explica Zanatta. Como comparação, na tragédia seria possível "trabalhar sozinho", sem essa resposta da plateia.
Nos 18 anos em que manteve sua escola de atores cômicos, Zanatta percebeu o quanto o comediante se vale de seus próprios conteúdos para se comunicar. E só vai adiante quem lida bem com essa exposição.
Um exemplo recente de espetáculo trazido à capital paranaense com essa carga é Minha Mãe É uma Peça, em que o ator Paulo Gustavo se valeu de trejeitos e histórias da mãe para homenageá-la.
Para liberar os atores de suas travas, Zanatta buscou "resgatar uma atividade da vida que é o jogo. Pelo racionalismo, acabamos perdendo a capacidade de jogar, que é um elemento não racional", conta.
A partir de brincadeiras como o improviso, ele conta ter visto surgirem questões pessoais dos atores que precisavam ser trabalhadas, como o medo do ridículo e as "máscaras" por trás das quais o artista se esconde.
O jogo tem servido de instrumento para muitos outros grupos, e alguns têm levado ao palco experiências como essa. A criadora do humorístico Terça Insana, Grace Gianoukas, se diz contra essa tendência. "É apenas um exercício de curso de teatro, mas virou show", disse à reportagem por ocasião de sua passagem por Curitiba, no mês passado.
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