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Mutum, de Sandra Kogut: respeito à singularidade dos personagens | Divulgação
Mutum, de Sandra Kogut: respeito à singularidade dos personagens| Foto: Divulgação
  • O Labirinto do Fauno: Guerra Civil Espanhola como pano de fundo

Quase todos os movimentos cinematográficos importantes – Neorrealismo Italiano, Nouvelle Vague, Cinema Novo, o cinema iraniano pós-Revolução Islâmica e a própria Retomada nacional – têm entre seus principais títulos filmes protagonizados por crianças. Não são obras destinadas ao público infantil, no entanto. Como você enxerga essa opção de tratar de questões da realidade pela perspectiva de meninos e meninas, ou colocando-os no centro das narrativas?

Acredito que escolher a perspectiva da infância no cinema constitui uma forma de amortecer as dores do mundo, por um lado (Bergala, 2006) e, por outro, é uma aposta na restauração de uma nova forma de ver o mundo, na tentativa (consciente ou não) de ter uma nova chance de ver/ter um mundo diferente e novo, como é percebido pelo olhar infantil. A criança na tela vira pelo avesso a figura do professor no quadro. Ela ensina, com sua ingenuidade, com seu candor – as vezes até romântico demais – algo para o adulto que está além de sua intencionalidade. Por mais de uma vez, ela ensina como viver, a arte de viver.

Em que medida os personagens infantis são, de fato, crianças, construídas como tal, ou são enfocadas como pequenos adultos?

Isto varia de filme a filme, é claro, mas acredito que é válido trazer a infância para a tela, para lhe restituir algo do seu "ser". Historicamente, as crianças têm sido tratadas como "Pinoquinhos", isto é, alguém que virá a ser "de verdade". Há na criança um desejo de "ser de verdade" aqui e agora com seus poucos anos, que todo adulto subverte quando lhe pergunta "o que você será quando crescer?" Acredito que personagens como os de Nelson Pereira dos Santos [Rio 40 Graus e Vidas Secas] e Sandra Kogut [Mutum], por exemplo são personagens infantis, de fato, respeitados na sua singularidade e na sua potência.

No caso específico da cinematografia brasileira, a figura da criança é frequentemente associada às mazelas nacionais em filmes que vão de Rio 40 Graus a Cidade de Deus, passando por Pixote – A Lei do Mais Fraco e Central do Brasil. O que você pensa sobre essa opção?

Penso que, de modo geral, no cinema latino e não apenas no cinema brasileiro, isso reflete a própria sociedade. A escolha das crianças talvez atrele algo de esperança, imagino, de conseguir afetar mais o espectador que, sem dúvida, ficará mais aflito com uma criança com fome, analfabeta ou prostituída. Em Rio 40 Graus, vemos crianças pobres sim, mas também vemos a soliedaridade, o gesto generoso e alegre das pessoas se organizando para viver plenamente a vida que tem no avesso do cartão postal de um Rio de Janeiro pobre e simultaneamente pujante. No caso de Cidade de Deus, temos um problema apresentado de forma mais maniqueísta, mas que igualmente reflete a mazela e ao mesmo tempo indica um caminho para a transformação. Pixote é talvez o único que não deixa opção nem dentro nem fora da tela, a morte do ator esquecido e abandonado ratifica o efeito do filme. E, no caso de Central do Brasil, temos a miséria humana restaurada por um gesto de doação e amor que também refresca toda mazela, apostando na força de um ser humano ser capaz de potenciar o melhor de si, em função da intensidade das circunstâncias de vida. E o cinema possibilita justamente isso, uma intensidade outra.

Em longas-metragens que lidam com o universo da infância em confronto com o mundo adulto, como Fanny & Alexander (de Ingmar Bergman), O Labirinto do Fauno (de Guillermo del Toro) ou A Fita Branca (Michael Haneke), há sempre uma ideia de choque, de trauma, de perda da inocência. O que você pensa disso?

O confronto da infância com o mundo adulto é sempre chocante, desde que existe o sentimento da infância na modernidade, segundo [o historiador francês] Philippe Ariès. Trata-se de proteger e cuidar a infância das dores, vergonhas, e necessidades fisiológicas da vida do adulto até a criança ficar em condições de poder participar. Antes da imprensa, não existia esse sentimento da infância e, como afirma [o crítico social] Neil Postman no seu livro O Desaparecimento da Infância, as crianças eram expostas a tudo sem nenhum cuidado, elas assistiam a cenas de violência, de sexo, e pouco depois de tirar as fraldas já participavam das rodas de trabalho dos adultos ouvindo suas conversas e participando dos fazeres. Não se encontram quadros com crianças que guardassem as proporções corporais ou vestissem roupas específicas. De fato, as crianças eram concebidas apenas como adultos miniaturizados. Com a invenção da imprensa e da escola, posteriormente atravessamos uma mudança, na qual a infância passou por um período de preparo para a vida adulta, tentando protegê-la e moralizá-la. Hoje, depois da invenção das telecomunicações, uma nova reforma na estrutura social e nas costumes tem atravessado nossas sociedades e, novamente, as crianças estão expostas a tudo através da internet, da tevê, usam igualmente nosso vocabulário e nossas roupas de tamanho mais reduzido...

A perspectiva da criança em filmes que tratam de família, como Cria Cuervos (do espanhol Carlos Saura) e Minha Vida de Cão (de Lasse Hallström) e Os Incompreendidos (de François Truffaut) é sempre muito potente, perturbadora. Por que esses filmes têm esse impacto?

Acredito que o cinema esteja refletindo com imagens uma realidade precária, como é a da família hoje. Inúmeros filósofos fundamentam com suas críticas a estrutura familiar por considerá-la conservadora e castradora. Porém, pessoalmente considero que até esse fato que o cinema e a filosofia explicitam revela a potência dessa primeira célula social e a importância na constituição subjetiva dos seus membros, em particular das crianças. Quando eu falo em família, não estou pensando na família nuclear estritamente e, sim, nos novos e diversificados modelos de família que hoje se multiplicam e sustentam fundamentalmente por "estar juntos" para além dos vínculos de sangue.

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