| Foto: Divulgação

Quando foi convidado para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na esteira do lançamento de seu A Arte de Perder (Leya, 320 págs., R$39,90), o norte-americano Michael Sledge percebeu que sabe mais sobre o Brasil da década de 50 do que sobre o atual. Um resultado natural de sua vinda anterior, motivada pela pesquisa para o livro, que fala sobre o relacionamento da poeta Elizabeth Bishop com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, história que será levada ao cinema pelo diretor carioca Bruno Barreto (Dona Flor e Seus Dois Maridos). Sledge concedeu entrevista por e-mail à Gazeta do Povo, em que explica os motivos que o deixaram intimamente ligado à escritora americana, que admira muito;

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O título de seu livro, em inglês, foi tirado de um verso de Camões. Qual a sua relação com a obra dele?

Minha relação com Camões ocorre pelos olhos de Elizabeth e Lota. Na verdade, minha relação com quase tudo descrito no livro – o Brasil, a arquitetura moderna, a poesia de meados do século 20 – é completamente visto e sentido por essas lentes. Tanto Elizabeth quanto Lota o amavam, e a dedicatória de Elizabeth a Lota em seu livro Questions of Travel foi tirada de um de seus sonetos: (...) O dar-vos quanto tenho e quanto posso,/Que quanto mais vos pago, mais vos devo./ Acredito que a dedicatória significa que a gratidão dela para com Lota era infinita pela oportunidade de amar tão profundamente – ser capaz de dar amor, não só de recebê-lo – após uma vida crendo que ela nunca teria nem poderia ter essa experiência.

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Quando e como você se apaixonou por Elizabeth Bishop?

É verdade que escrever um livro se assemelha à paixão amorosa – primeiro você é carregado por algo que não pode controlar, e então você ou se entrega àquilo, sem saber para onde o levará, ou bate a porta porque aquilo te assusta ou é de alguma forma inconveniente. E então começa a longa viagem do cotidiano juntos, com suas surpresas, alegrias e frustrações. Eu caí no feitiço de Elizabeth Bishop quando li sua coleção de correspondências. Como muitas pessoas, e muitos escritores, eu sempre tinha admirado sua poesia e prosa. Seu trabalho é conhecido pela precisão técnica e pela omissão pessoal; ele certamente não convida o leitor a conhecer a vida do autor, a conhecê-la ou a simpatizar com ela. Isso não fazia o seu tipo. Ela permanece bastante difícil de conhecer, ao menos a partir de sua obra. Já as cartas são completamente diferentes. São calorosas e engraçadas, cheias de tiradas inteligentes e emoção, e incrivelmente detalhistas sobre sua vida cotidiana. Quando foram publicadas, elas me revelaram seus anos no Brasil e seu amor por Lota. Foi marcante para mim o fato de que, quando viva, Bishop era considerada uma poeta precisa, dedicada à paixão seca de sua arte, quando na realidade ela passou 20 anos vivendo um caso de amor apaixonado nas exuberantes florestas do Brasil.

Sua vida até então havia sido extremamente traumática. Seu pai morrera quando ela era criança, e sua mãe, internada em uma clínica psiquiátrica logo depois. Ela lutou contra o alcoolismo e problemas de saúde por toda a vida, e, mesmo assim, continuou produzindo seus lindos poemas. Ela veio ao Brasil numa tentativa de escapar de si mesma, e no entanto foi aqui que ela encontrou uma força que nem sabia ter, por causa do amor de Lota e do lar que criaram juntas. Eu admiro sua sobrevivência, apesar de que ela própria se considerava fraca e doente. E amo sua energia incansável e seu compromisso absoluto com a beleza e a criação artística, ainda que pagando um preço por isso. Ao longo dos anos em que escrevi o livro, acabei percebendo mais e mais a complexidade das duas personagens – as contradições, o mistério – e uma compaixão profunda por essas duas mulheres incríveis. Considero que a história delas, ainda que envolva uma grande tragédia [o suicídio de Lota], é uma história de amor triunfante, e foi por isso que desejei escrever sobre ela.

Você se considera semelhante a ela de alguma forma?

Bom, para começar ela era um gênio e eu não – uma grande diferença que faz qualquer semelhança parecer superficial. Mas, curiosamente, minha vida começou a adquirir o formato da vida dela enquanto eu escrevia. Eu também me mudei para uma cidade isolada da América Latina. Eu também passei a viver em uma casa pela metade aberta a pássaros e animais. Eu também me envolvi com um sul-americano extremamente enérgico e criativo. Eu até descobri recentemente que ambos tivemos burros que foram atacados por morcegos vampiros... Gosto de pensar que, de uma forma estranha, por meio dessas experiências, ela estava misturando minha imaginação com a dela – tentando me ajudar a entendê-la melhor, como pessoa e personagem – e a enxergar mais. Ainda sou muito grato a Elizabeth Bishop por me atrair tanto, de tantas formas, para dentro de seu mundo tão lindo.

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Que aspectos do Brasil mais o impressionaram durante a pesquisa para o livro?

É engraçado, mas acho que sei muito mais sobre o Brasil dos anos 50 do que o do século 21. Como disse, quase tudo que senti e aprendi foi filtrado pela visão de Bishop. Cada descrição da natureza, cada encontro passa por suas emoções ou psicologia.

No entanto, escrever o livro foi uma ótima desculpa para passar vários meses no país, a maior parte no Rio de Janeiro e viajando para os locais onde ela viveu. Gostei muito de imergir nas artes e arquitetura brasileiras, que foram tão importantes para Elizabeth e Lota, e descobrir como a História brasileira foi dinâmica e turbulenta. Quando um estrangeiro chega ao Brasil, é difícil que não ande de boca aberta em choque e admiração com as belezas do lugar. Belezas naturais, culturais – é quase extasiante. Ao contrário de Bishop, porém, permaneci como turista a maior parte do tempo, então consegui ficar só aproveitando os sons e paisagens – que é o luxo do turista. Eu sei que, assim como no México, onde moro há cinco anos, eu desenvolveria uma relação mais realista e complexa com o lugar se ficasse mais tempo. Esse foi um desafio de escrever o romance, imaginar e apresentar a relação que ela tinha com o país, enquanto a minha era, para ser honesto, não muito profunda, e sim mais contemplativa. Mas esse é o papel do escritor. Imaginar o que não sabe.

Como você se envolveu com o México e como isso afetou sua literatura?

Assim como Elizabeth no Brasil, eu tenho um caso de amor com o México que às vezes nos faz querer matar um ao outro. Eu cresci no Texas, que faz fronteira com o país. Minha mãe passou parte da vida na América Latina, e eu sempre me senti atraído pelas histórias dela como criança no Panamá. Alguns anos atrás, meu companheiro estabeleceu um projeto artístico em Oaxaca, no sul do México. Todo verão, fazemos oficinas em que estudantes americanos colaboram com artesãos mexicanos – tecelões, ceramistas, fabricantes de fogos de artifício e piñatas. Às vezes, como Elizabeth descobriu, a vida dá voltas surpreendentes. Agora eu vivo a maior parte do ano em uma cidade pequena, numa velha fazenda de 300 anos, repleta de histórias de fantasma e supostos tesouros enterrados. Meu cotidiano é cheio de poesia, beleza e surpresa, com uma textura que simplesmente não existe no Norte, e num caos que às vezes me deixa louco. Minha experiência no México foi essencial para escrever sobre Elizabeth Bishop no Brasil. Entendo como é ser totalmente estranho numa terra diferente, e encontrar formas de vida além da compreensão, e ainda assim se lançar para elas. Assim é viver em outra cultura, eu acho, e amar esse lugar. É como amar outra pessoa, seja quem for.

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Você foi convidado para falar na Flip sobre a literatura de viagem. De que forma as viagens influenciam os livros?

Acho que as origens da literatura ocidental derivam diretamente da ideia da viagem. É difícil não pensar em Homero, em deixar tudo que você conhece e encontrar o diferente, ser obrigado a confrontar seu eu mais profundo e, talvez, mais escuro. O próprio ato de imaginar significa abandonar o que já se sabe para habitar outro tipo de mundo. Para ser mais explícito, eu comecei este livro na sombra do 11 de Setembro, e, apesar de nada no romance se referir abertamente a isso, era algo em que eu pensava enquanto escrevia. Os norte americanos já vivem em uma sociedade muito diversificada, mas o evento trouxe uma urgência em confrontar pessoas diferentes de nós. Detesto dizer que, como nação, nós não encaramos a tragédia como uma oportunidade para entender, mas para agredir ainda mais.

Com frequência eu escrevo sobre alguém que está fora de seu mundo confortável – como a experiência de Elizabeth com Lota no Brasil –, que faz com que o personagem confronte algo profundo em si mesmo. Por alguma razão pessoal, e pela minha experiência vivendo em outro país, me sinto atraído pela alteridade. Se lançar na direção de outra pessoa que você nunca irá entender completamente é um ingrediente necessário do amor, e pode também ser um ato de compaixão. Na vida real, esse ato pode parecer uma raridade – em geral, respondemos é com medo e violência às diferentes culturas e raças – mas talvez a literatura seja um lugar para reimaginar esse encontro, tornar possível outras forma de existência.