"Esté é meu primeiro longa-metragem que não tem um curitibano no elenco. Deveria ter arranjado um para me dar sorte." Com essas palavras, o cineasta paulista Cao Hamburguer reage quando este jornalista se identifica como repórter da Gazeta do Povo. Refere-se ao fato de, em seus longas-metragens anteriores, sempre ter trabalhado com atores nativos da capital paranaense: o ator mirim Diegho Kozievitch, que viveu o protagonista Nino em Castelo Rá-Tim-Bum (1999); e a atriz Simone Spoladore, intérprete da mãe do protagonista em O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006).
ÁUDIO: Ouça as entrevistas com o diretor Cao Hamburguer e os atores Caio Blat e Felipe Camargo
Na próxima sexta-feira, dia 6 de abril, estreia em 250 cinemas o novo filme de Hamburguer, a superprodução Xingu, que custou R$ 14 milhões. Mas, se no elenco principal não há mesmo nenhum curitibano, o diretor se esqueceu que um de seus atores principais, o baiano João Miguel, se tornou figura emblemática na história do cinema paranaense, ao viver o presidiário cozinheiro Nonato, personagem central de Estômago, longa-metragem do cineasta Marcos Jorge que conquistou público e crítica onde foi exibido.
Em Xingu, João Miguel tem papel central: ele é Claudio Villas-Bôas (1916-1998), personagem escolhido por Hamburguer para narrar a saga empreendida por ele e seus irmãos, Orlando (1914-2002) e Leonardo (1918-1961), pelas regiões Centro-Oeste e Norte. Participaram da Expedição Roncador-Xingu, integrante do processo de interiorizacão do Brasil, a chamada Marcha para o Oeste, criada em 1943 pelo governo de Getúlio Vargas com o intuito de desbravar fronteiras nunca antes transpostas no país.
Sob o comando do coronel Flaviano de Mattos Vanique, foi recrutado, no atual estado do Mato Grosso, um grupo formado por dezenas de sertanejos. Leonardo e Claudio teriam feito uma primeira tentativa de ingressar na expedição, mas rapazes da classe média do interior de São Paulo, educados e pouco acostumados às intempéries que iriam encontrar em território amazônico, foram barrados pelo comando da missão.
Na versão dos fatos defendida pelo filme, "livremente baseada em fatos verídicos", segundo Hamburguer, os dois teriam retornado anos mais tarde, com barbas crescidas e uma aparência mais rude, se fazendo passar por humildes trabalhadores braçais analfabetos. E acabaram sendo aceitos.
Mais tarde, quando haviam conseguido se impor à frente da expedição, chamaram o irmão mais velho, Orlando. Juntos escreveriam um dos capítulos mais importantes da história da relação entre o Estado brasileiro e os indígenas na história do país, sendo responsáveis diretos pela criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961. Ao longo de 35 anos de trabalho dedicado aos povos da floresta, catalogaram cerca de cinco mil indígenas e várias tribos, além de terem promovido o surgimento de várias cidades na região, originadas pelos postos avançados por eles criados.
Projeto
Cao Hamburguer, ao participar de uma coletiva de imprensa na última semana, em São Paulo, entregou ao cineasta Fernando Meirelles (de Cidade de Deus) um colar feito com conhchas de caramujo por índios que participaram da produção de Xingu. Foi um presente de agradecimento.
"Sem saber, o Fernando me deu a oportunidade de mudar muito da percepção que eu tinha não apenas dos indígenas brasileiros, mas da própria história do país", disse Hamburguer. Meirelles, que coproduziu o filme por meio de sua empresa, a O2, havia sido procurado várias vezes pelo advogado e filósofo Noel Villas-Bôas, filho de Orlando, vivido pelo ator carioca Felipe Camargo.
"O Noel insistia que deveríamos fazer um filme sobre o pai e os tios. Ele dizia temer que o país esquecesse da história deles. Numa das vezes que me procurou, ele me deu um exemplar do livro Marcha para o Oeste A Epopeia da Expedição Roncador-Xingu [escrito por Orlando e Claudio, e agora relançado pela Companhia das Letras]. Tirei um fim de semana para lê-lo e percebi que ali havia um filme e o ofereci ao Cao", conta Meirelles.
Ficcionalização
Como é uma história complexa, que se estende por quase 40 anos, mas com muitas lacunas, a trama de Xingu não é completamente fiel aos fatos. "Fizemos uma ampla pesquisa, lemos tudo o que havia disponível, vimos todos os documentários já realizados, mas ainda restaram muitas perguntas sem respostas e, em benefício da dramaturgia, tomamos, sim, algumas liberdades", explicou Hamburguer.
Sabe-se muito pouco, por exemplo, como exatamente se deu o rompimento de Orlando e Claudio, com o irmão mais novo, Leonardo, vivido por Caio Blat, que partiu da reserva depois que a imprensa nacional divulgou que ele havia engravidado uma índia. Foi um escândalo sexual que maculou a imagem da expedição e tornou insustentável a permanência do rapaz na reserva. Ele morreria, do coração, em 1961, aos 43 anos, sem ter se reconciliado com os irmãos.
Produção
Escrito por Hamburguer, em parceria com Anna Muylaert (diretora de É Proibido Fumar ) e Elena Soárez (roteirista de Casa de Areia), o roteiro de Xingu teve inúmeras versões. Muito do que foi rodado, acabou ficando de fora, e poderá resultar em uma nova edição, sob o formato de minissérie, que poderá ser exibida pela Rede Globo no futuro. "É uma possibilidade, não uma certeza", afirma o diretor.
O processo de rodagem, por sua vez, não foi menos complexo. Parte das cenas de cerrado e selva foi filmada no estado de Tocantins, no Parque Nacional do Jalapão. Mas um número significativo de sequências, sobretudo aquelas envolvendo as aldeias indígenas, foram rodadas in loco, no Parque Nacional do Xingu.
"Quando chegamos lá, tivemos uma surpresa. Achamos que não iríamos poder fazer o filme, tamanha a poluição, em decorrência das queimadas nos territórios ao redor do parque. A fumaça era tão espessa que os aviões com as equipes, com os mantimentos, não conseguiam pousar", conta Caio Blat, acrescentando que alguns dias eles ficavam sem as refeições, transportadas em quentinhas por via aérea, e a equipe tinha de sair para pescar e caçar com os índios.
"De certa maneira, vivemos uma relação de imersão cultural, de mergulho, semelhante ao vivenciado pelos Villas-Bôas. Essa experiência nos tocou profundamente, nos mostrou o quanto desconhecemos sobre esses primeiros habitantes do país", acrescentou Felipe Camargo.
O repórter viajou a convite da produção do filme.