Pescador lança tarrafa na foz do São Francisco, em Alagoas| Foto: Silvio Ribeiro/Gazeta do Povo

Entrevista com Luiz Sérgio Repa, professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.

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"Creio que vivemos hoje os resultados de duas grandes crises sucessivas no mundo do trabalho em sua dimensão simbólica", diz Luiz Sérgio Repa, professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. Para ele, por causa de tais crises, poucos se realizam no que fazem.

Doutor pela Universidade de São Paulo, com passagem pela Goethe-Universität, da cidade de Frankfurt, ele é pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A obra do filósofo alemão Jürgen Haber­mas, que dedicou parte de seus estudos à análise de questões ligadas ao trabalho, foi base para a tese de doutorado de Repa.

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Na entrevista a seguir, feita por e-mail, ele fala sobre felicidade, frustração e outros assuntos ligados ao mundo do trabalho.

A felicidade no trabalho pode ser considerada um mito?

Parece que a ideia de que o indivíduo possa se realizar completa ou substancialmente no trabalho passou por duas inflexões desde pelo menos a segunda metade do século 20. Em um primeiro mo­­mento, a ética do trabalho, que pretendia definir a identidade de cada um por meio de suas realizações na esfera do trabalho, se enfraqueceu. Fora as atividades em que a criatividade e o desenvolvimento intelectual do indivíduo não foram impedidos de todo por mecanismos formais de produtividade, cada vez mais surgiu nesse período uma gama ampla de projetos de vida que já não passavam pelo trabalho profissional. Trabalhava-se para "ganhar a vida", mas a vida mesma não estava lá no trabalho, e sim nas relações de amizade, no engajamento político, na vida cultural etc. Uma segunda inflexão, que co­­meça em meados dos anos 70, consiste em resgatar, tanto na esfera diretamente produtiva como no setor de serviços, uma espécie de identificação plena com o trabalho, acompanhada de uma desregulamentação trabalhista que coage de todo modo para isso. O caráter da administra­­ção e da produção empresarial se modifica, não mais o indivíduo trabalhador é destinado a uma só tarefa, mais se exige de sua criatividade, e mais ele tem de se comprometer com a empresa. Com os novos meios de comunicação, são dadas, assim, as condições de um trabalho 24 horas ao dia. Como falta quase sempre um reconhecimento "material" em forma ou de salários correspondentes ou de segurança, essa "felicidade no trabalho" se revela atualmente uma ideologia, na qual os de dentro acreditam porque isso significa continuar "dentro", e da qual os de fora escarnecem sem encontrar alternativas. Provavelmente vivemos hoje os resultados das duas crises, poucos se realizando verdadeiramente no trabalho.

O filósofo suíço Alain de Bot­ton escreveu que "O desejo de atribuir significado ao nosso trabalho é uma parte inata e inflexível de nossa composição". Quando um trabalho é significativo?

Essa ideia parece ter um fundamento antropológico bastante questionável. Vagabundos podem ser felizes. Vejo nisso um resquício da ética do trabalho, que passa por cima de configurações históricas muito distintas, como as da antiguidade e do me­­dievo. Atualmente a maioria pa­­rece se comportar diante do seu trabalho como diante de um jogo que não escolheram jogar. Em todo caso, o reconhecimento so­­cial de suas realizações fornece um sentimento de autoestima importante. Resta saber o quanto é decisivo. O reconhecimento pa­­ra além da esfera do trabalho pode ser mais importante.

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O filósofo Gilles Lipovetsky afirma, no livro A Felicidade Pa­­radoxal, que vivemos numa "era da eficácia" no trabalho e que ela estaria associada "à inquietação com o futuro, às coerções e ao aumento das pres­­sões que pesam sobre o assalariados". Esse pode ser um retrato acurado da sociedade atual?

A eficácia no trabalho corresponde não só ao imperativo de valorização do capital, mas também ao grau de satisfação material mínima exigida por uma sociedade de massas. Na medida em que a reprodução material da sociedade ainda exigir uma produção que corresponda a esse grau, seja no modo de produção capitalista seja em um socialista futuro, a exigência de eficácia produtiva não vai diminuir, ela talvez se intensifique. A questão sobre as pressões sobre os assalariados é de outra ordem. No contexto do capitalismo atual, as demandas dos trabalhadores por "menos trabalho" e por proteção social se viram debilitadas por um desajuste entre a ação política internacional do capital e a ação política nacional do trabalho. Ou seja, o capital se move entre os estados nacionais desiguais, enquanto as forças do trabalho se limitam ao quadro das políticas nacionais.

Ainda Lipovetsky: "Na realidade, é menos a própria atividade do trabalho que proporciona satisfação do que os fatores ditos ‘extrínsecos’: segurança, relações sociais, salários, vantagens sociais, melhoria do ní­­vel de vida." Você concorda com essa afirmação?

Sim, mas "extrínsecos" merece as­­pas, realmente. E isso de dois pontos de vista. Como disse, a proteção social para os que não trabalham é frágil ou inexistente. O trabalho se apresenta, para a maioria da população, como uma injunção. Certamente, aos poucos os trabalhadores aprendem também a valorizar seu trabalho por conta de necessidades sociais preenchidas, mas nem por isso diminui o sentimento de que não é nisso que eles se realizam fundamentalmente. Quan­­to mais eles se sentem substituíveis, mais o trabalho se lhes im­­põe novamente como mera necessidade. Por outro lado, quando eles seguem de algum modo as quebradiças formas de estimular o trabalhador por meio de reconhecimentos simbólicos, mais se sentem frustrados com a falta de uma melhora material correspondente. De uma forma ou de outra, a melhora material nunca é extrínseca, nem para aquele que vê o trabalho como necessidade, nem para aquele que o vê como autorrealização.

Marx escreveu: "O operário só tem o sentimento de ser ele mesmo fora do trabalho e, no trabalho, sente-se fora de si. Sen­­te-se em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não se sente em casa". Na sua opinião, o que o trabalho representa nos dias de hoje – ainda somos o que fazemos?

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Como disse, creio que vivemos hoje os resultados de duas grandes crises sucessivas no mundo do trabalho em sua dimensão simbólica. A ideia de que o indivíduo se realiza no trabalho foi enfraquecida no contexto de uma segurança social relativa, que favoreceu outras formas de realização. Em seguida, essa dissolução da ética do trabalho foi compensada por tentativas bastantes artificiais de identificação com o trabalho, que tem resultados penosos para certas camadas médias da população, no contexto da insegurança social. Não sei se o operário se sente em casa fora do trabalho. Mas certamente boa parte da população operária continua a não se sentir em casa no trabalho. É claro que o que fazemos, ou praticamos, diz muito sobre o nosso ser. Porém essa práxis não precisa ser pensada exclusivamente em termos do trabalho profissional. Cotidia­na­mente realizamos muitas outras coisas, embora quase sempre à sombra do trabalho ou da falta dele.

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