Lançamento
As Agruras do Verdadeiro Tira
Roberto Bolaño. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras. 315 págs. R$ 44,50. Romance.
Se o acaso leva As Agruras do Verdadeiro Tira às mãos de leitor pouco familiarizado com a obra do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), encarar este lançamento póstumo pode parecer tarefa ingrata. O livro sai agora no Brasil e as primeiras informações que recebemos da obra, pelo próprio prólogo de Juan Antonio Masoliver Ródenas e pela nota explicativa da viúva de Bolaño, Carolina López, não são encorajadoras.
Ficamos sabendo que o trabalho é um romance "cujas partes estão desigualmente acabadas", com seus capítulos dispostos da maneira que os editores julgaram corresponder ao intuito de Bolaño; que a maioria dos personagens do livro já apareceu em outras obras do autor e volta neste romance de escrita "visionária, onírica, delirante" e "até mesmo provisória"; que o escritor definiu o projeto como "um enredo louco que não há quem entenda" e explicou seu título a princípio estranho, já que o romance não traz nenhum policial como protagonista com o período "o tira é o leitor, que tenta em vão ordenar este romance endemoniado". Ai, ai.
Boa notícia que antecipo desde já: nada disso atrapalha a leitura prazerosa e fluida deste Agruras. No mais, lamenta-se a apresentação desastrada do livro pela editora, que, com sua forçada de barra no material de apresentação, passa a noção errônea do romance como um lançamento caça-níqueis que apenas traz volume à impressionante pilha de títulos póstumos publicada com o nome de Bolaño. Novamente, o leitor pode sossegar: seja qual for a intenção, ou a pureza de espírito, dos responsáveis pela edição, não se pode negar o evidente valor literário do livro. Lança-lo não foi um equívoco: há acréscimo à obra do escritor.
Sim, o trabalho se enquadra perfeitamente nos dois clichês mais surrados e irritantes quando se trata de literatura pós-moderna: "narrativa fragmentária" e "mosaico de referências". A repetição da velha fórmula não é demérito quando cada trecho isolado é repleto de força, estilo e um senso de humor bastante particular. A profusão de citações não soa pedante e não atravanca a leitura de quem não as identifica, apenas diverte e traz novas nuances ao leitor que capta as referências. Ademais, as restrições quanto às obras trazidas a público sem que o autor as desse por acabadas podem ser facilmente transpostas quando se lembra de exemplos, das mais variadas artes, que hoje têm status de clássicos e se enquadram no rótulo: O Processo, de Kafka, É Tudo Verdade, de Orson Welles, Réquiem em Ré Menor, de Mozart, A Adoração dos Reis Magos, de Da Vinci...
Um resumo que se pode fazer do enredo: o professor de literatura Óscar Amalfitano é expulso da Universidade de Barcelona depois de se descobrir um homossexual tardio e se envolver escandalosamente com seu aluno Padilla. Tem então de se mudar com a filha, Rosa, para lecionar em Santa Teresa, no México, mas mantém correspondência com seu amante. Lugares, pessoas e situações relacionadas ao presente, passado e futuro dos três personagens preenchem o conteúdo do livro, sem que haja uma sequência de eventos bem definida.
As referências mais óbvias de Agruras ficam dentro da literatura latino-americana. Os grandes saltos espaço-temporais e a relativa desimportância da ordem em que se leem os capítulos remetem a Cortázar. O recorrente uso da metalinguagem, as biografias de personagens históricos fictícios e as resenhas de livros imaginários lembram Borges; a descrição pitoresca de locais da América Latina e o gosto por histórias que abrangem um grande lapso de tempo fazem pensar em García Márquez, sendo que o relato hilariante da sucessão de sete gerações de novas "María Expósito" não pode ser entendido senão como homenagem ao Cem Anos de Solidão e seus muitos Aurelianos e Josés Arcádios.
As Agruras do Verdadeiro Tira não disfarça a feiura do mundo, mas guarda passagens de beleza lírica e outras francamente cômicas; instiga à reflexão sobre o mundo contemporâneo e dialoga com outras obras sem parecer um tratado; desafia e incomoda o leitor, mas o entretém. Que mais se pode esperar da boa literatura?
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