São Paulo – O ano que terminou deu a impressão de colocar em xeque, como não havia ocorrido antes, uma das idéias fundadoras do Brasil no século 20: a da mestiçagem.

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Da expressão cunhada por Cláudio Lembo, "elite branca", à discussão sobre cotas, algo parecia perder-se, quebrar-se, velozmente.

O que esteve em jogo aí, para além da cor da pele e das relações entre negros e brancos no Brasil, foi certa identidade do país. Ao proporem a si mesmos uma idéia de cultura nacional, os brasileiros sempre a pensaram como "mestiça" – não só os brasileiros, mas suas idéias e produções artísticas seriam resultados de misturas. Se não é mais mestiço (nem mulato nem cordial), o que é o Brasil? E de repente, no fim do ano, surge um simpático livro de uma autora argentina, Estação Brasil – Conversas Com Músicos Brasileiros (Editora 34, R$ 38; 248 págs.), cujo tema recorrente, nas entrevistas que Violeta Weinschelbaum faz com os principais cantores e compositores da MPB, é justamente esse: identidades brasileiras (logo, mestiçagens).

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Não só a identidade desse país estrangeiro para a autora, o Brasil, e de sua cultura, mas a dos entrevistados se torna assunto constante em suas conversas com, entre outros, Caetano Veloso, Rita Lee, Arnaldo Antunes e Chico Buarque.

A discussão começa com Caetano, guia intelectual de Weinschelbaum, que diz ter percebido a certa altura que "a solução do tema da identidade brasileira incluía a aceitação por minha parte de uma figura ‘Caetano Veloso’ no mundo".

Arnaldo Antunes relaciona sua reação a qualquer forma de "especialização" artística – "esse tipo de definição que o público costuma estabelecer ou exigir dos artistas aprisiona" – e a época atual, "na qual o trânsito entre os gêneros e os códigos é mais fluido", com a mestiçagem. "No Brasil, por ser um país mestiço em sua natureza cultural, é ainda mais fácil que em outros países (a fluidez), porque a convivência com a diversidade e a diferença foi reivindicada por movimentos anteriores como a antropofagia e o tropicalismo." É nessa entrevista que surge com clareza uma idéia que pode dar um significado interessante ao conjunto das conversas. "Uma canção é a coisa mais indissociável: não é um texto cantado nem uma melodia com letra", diz Arnaldo.

A idéia também aparece, sob formas diferentes, nas conversas com Caetano e com Adriana Calcanhoto. A canção popular, tema do livro de Weinschelbaum, forma privilegiada de leitura e de relação com o Brasil, é então o exemplo máximo de mestiçagem: texto e música indissociáveis. Pode também ajudar a pensar sobre a declaração recente de Chico Buarque, feita fora desse contexto: "Como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido".