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Os protagonistas de Michel Houellebecq têm algumas características em comum. São solteiros, quarentões, cultos, irônicos, ateus e sacanas até o último fio de cabelo grisalho. Daniel, o narrador de A Possibilidade de uma Ilha (Tradução de André Telles. Record, 480 págs., R$ 49,90), encaixa-se na descrição que já foi de Bruno e de Michel Renault, figuras centrais dos romances anteriores Partículas Elementares e Plataforma.

Na verdade, Daniel, comediante que gosta de citar o filosófo Schopenhauer, não é apenas um, mas três. A narrativa se alterna entre o humano Daniel1 e os "neo-humanos" Daniel24 e Daniel25. O primeiro vive nos dias de hoje, enquanto os outros dois habitam uma Terra futura, consumida por tragédias naturais e guerras.

A entidade referida como "Irmã Suprema" foi responsável por criar um tipo de imortalidade, viabilizada por clones, e uma sociedade pacífica graças à erradicação do dinheiro e do sexo. A memória é transmitida de uma geração para outra através da internet e os neo-humanos não têm contato físico entre si. Esse é o cenário futurista, à la Philip K. Dick (autor de Blade Runner), responsável pela atmosfera bizarra da história.

No presente, o astro Daniel é um francês que vive na Espanha – como o próprio Houellebecq –, responsável por espetáculos como "Chupe minha Faixa de Gaza" e "Preferimos as Surubas com as Palestinas". Não é o que se pode chamar de humor fino. Ainda assim, ele faz um sucesso inacreditável e as pessoas o adoram.

O romance se desenrola a partir das relações do primeiro Daniel com as mulheres e o universo cultural. Puro pretexto para o escritor desenvolver teorias a respeito de quase tudo. Quando conheceu Isabelle, sua segunda mulher (mas a primeira a fazer suas palmas das mãos suarem), ela trabalhava como editora de uma revista para adolescentes, curiosamente consumida por mulheres com idade suficiente para serem mães do público-alvo.

Na primeira conversa de ambos, Vladimir Nabokov, autor de Lolita, é chamado de "pseudopoeta medíocre e afetado", que teria errado a idade de sua personagem em cerca de cinco anos. "O que agrada a maioria dos homens não é o momento que precede a puberdade, mas o que a sucede imediatamente", diz Isabelle.

A intimidade entre eles cresce e logo passam a viver como marido e mulher. Nesse ponto, Houellebecq é impiedoso ao tratar do envelhecimento e mais ainda ao abordar a forma com que a sociedade atual lida com o fato.

No aniversário de 40 anos de Isabelle, Daniel percebe um olhar "humilde e triste, do animal doente, que se afasta alguns passos da matilha, que coloca a cabeça sobre as patas e suspira suavemente, porque se sente atingido e sabe que não terá, da parte de seus congêneres, nenhuma piedade a esperar".

Não existe a possibilidade do amor romântico em Houellebecq. Amizade e companheirismo, o protagonista só experimenta ao conviver com o cão Fox, a única criatura tratada com simpatia e compaixão em todo o livro. "Quando a sexualidade desaparece, é o corpo do outro que aparece em sua presença vagamente hostil; são os ruídos, os movimentos, os cheiros; e a presença mesma desse corpo que não se pode mais tocar, nem santificar pelo contato, torna-se pouco a pouco um estorvo. (...) Quando o amor físico morre, tudo morre."

O dicionário tem uma palavra para definir Houellebecq: misantropo. "Aquele que tem ódio ou aversão à sociedade", diz o Aurélio, "aquele que evita a convivência, que prefere a solidão". A misantropia do francês não perdoa nem a criatura tida como a mais adorável da espécie: a criança, que ele considera um tipo de "anão vicioso, de uma crueldade inata, em que se encontram imediatamente os piores traços da espécie e de quem os animais domésticos desviam com sábia prudência". O único destino do ser humano é, enfim, "propagar a infelicidade ao redor, tornando a existência dos outros tão intolerável quanto a sua – suas primeiras vítimas sendo em geral os pais." Ele chega ao extremo de defender que uma câmera fotográfica Rolleiflex – a mesma que inspirou Tom Jobim em "Desafinado" – funciona melhor e é mais elegante que um homem.

Pelo isolamento, os neo-humanos são incapazes de compreender (muito menos de ter) sentimentos como bondade, compaixão, fidelidade e altruísmo. No caso dos Daniéis 24 e 25, apesar de serem herdeiros de um humorista, eles são completamente desprovidos de senso humor e, por mais que tentem, não conseguem rir jamais. Essas características os aproximam dos andróides de Blade Runner e conduz ao maior problema de A Possibilidade de uma Ilha, a terceira e última parte do livro. Com a morte de Daniel1 (essa informação não estraga a história, pois ela é pressuposta pela existência dos dois clones), Daniel25 assume a narrativa. As descrições longas das paisagens áridas da Terra futura e as sensações físicas e químicas experimentadas pelo personagem deixam evidente que a narração é feita por uma criatura próxima de um robô. Sem humor, o desfecho do livro – o mais longo escrito por Houellebecq – é extenuante. Enquanto as teorias se tornam amargas e raivosas.

Ambientar a história no futuro pode ter sido uma maneira pouco engenhosa de ganhar distância para elaborar críticas à sociedade atual, além de descrever um futuro inóspito, um retorno à época das cavernas. Enfim, Houellebecq sugere que o homem nunca deixou de ser, na essência, um primata.

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