Trechos de A Brincadeira Favorita
"Montreal vinha comprando loucamente discos de Leadbelly e dos Weavers, e invadindo o Gesu Hall em casacos de vison para ouvir Peter Seeger interpretar canções socialistas. Breavman estava na festa por conta de sua reputação de cantor folk e subcelebridade. A anfitriã sutilmente havia sugerido ao telefone que levasse o violão, mas ele não tinha levado. Não tocava havia meses."
"Eram melhores as brincadeiras da carne, do amor, da curiosidade. Abandonaram o pique-bandeira no parque e sentaram-se num banco perto do lago onde as babás fofocavam e as crianças soltavam bacos de brinquedo."
O desavisado que ler A Brincadeira Favorita, do cultuado cantor e compositor canadense Leonard Cohen, lançado este mês pela editora Cosac Naify, sem saber que esse é o romance de estreia e foi finalizado quatro anos antes do lançamento do seu primeiro disco (Songs of Leonard Cohen, de 1967), pode pensar que Cohen escreveu a obra no auge de sua carreira como cantor. Explica-se: o texto, publicado em 1963, mas só agora traduzido no Brasil é essencialmente musical. É difícil imaginar que, na época, Cohen sequer pensasse em seguir carreira musical, tamanhas são as referências que ele faz a cantores e canções ao longo da história, essencialmente autobiográfica.
O livro (com orelha do escritor Daniel Galera) é narrado em terceira pessoa e conta a trajetória do menino Lawrence Breavman, desde a adolescência em Montreal, no Canadá, no final dos anos 1940, até seu autoexílio em Nova York na década de 1950, repleta de aventuras literárias e afetivas. Durante esse período, Lawrence assiste a morte de seu pai, um homem doente e cuja partida deixou no filho marcas profundas, vê a mãe enfrentar uma loucura crescente e elabora as suas primeiras brincadeiras sexuais. O ainda adolescente Breavman desenvolve uma fixação que beira o anormal pelo corpo feminino, e divide essas dúvidas, e outras existenciais, com o inseparável amigo, Krantz.
Traduzido por Alexandre Barbosa de Souza, fã de Leonard Cohen (que já traduziu, entre outros títulos, Só Garotos, da cantora Patti Smith), o livro é dividido em capítulos curtos e traz, além da densidade poética familiar para quem gosta de canções como "Famous Blue Raincoat" e "Chelsea Hotel #2", um humor ácido e sofisticado. Na obra, é possível perceber várias contestações de Cohen sobre seu desenvolvimento e origem, sobretudo na religião (ele é de família judia, bastante tradicional e abastada).
"É um livro sobre a formação de pessoas ricas, mas meio outsiders dentro da elite na qual Cohen e sua turma de Montreal cresceram. Ele vai descobrindo uma variedade beatnik. Ele viveu uma vida de playboy, escreveu parte do livro na Grécia. Mas é um verdadeiro poeta. Senão, não teria sobrevivido", diz Souza. Em recente entrevista para o jornal inglês The Guardian, Cohen, que lançou seu álbum de inéditas, Old Ideas, no final de janeiro, falou sobre a publicação de A Brincadeira Favorita no Brasil e disse que só conseguiu terminar o texto porque a dona do apartamento em que ele morava na época, em Londres, ameaçou despejá-lo se ele não escrevesse pelo menos três páginas por dia. Inicialmente, a ideia do cantor/escritor era redigir uma assumida autobiografia, mas logo mudou de ideia e fez uma ficção livremente baseada na sua vida. Até terminá-lo, em 1963, o cantor reescreveu o texto pelo menos cinco vezes.
Influências
Ao longo do livro, Leonard Cohen cita várias canções em meio aos diálogos, como "I Dreamed I Saw Joe Hill Last Night", de Earl Robinson, executada por Joan Baez no Festival de Woodstock, em 1970. Na época, ele já tocava violão, mas sem pretensões. Antes do romance, a carreira literária ia relativamente bem, mas sem alardes: lançou dois livros de poesia, com sucesso mediano. "É um livro que valoriza a ideia da poesia como rebeldia. Ele preferiu se dar mal socialmente para viver da maneira que queria."
Serviço:
A Brincadeira Favorita, de Leonard Cohen. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. Cosac Naify, 248 págs. R$ 39,90.
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