No meio da semana fez estréia oficial, em palco do Rio de Janeiro, na Lapa, mais precisamente, o quinteto Casuarina, formado por cinco meninos que ainda não chegaram aos 30 anos e integram um movimento (um dos movimentos) de renovação (não gosto dessa palavra) do samba, ao lado dos compositores Moysés Marques e Diogo Nogueira. Diogo é filho de João Nogueira e tem vozeirão e molejo parecidos com os do pai, que morreu antes da hora.
Duas semanas antes, a mesma Lapa ferveu trânsito engarrafado como em dia de carnaval com a estréia de um show da potiguar (a que, no entanto, os jornais se referem como carioca) Roberta Sá, a mais nova "primeira dama do samba". Vai entre aspas não porque ela não mereça, mas porque daqui a pouco surge outra e lhe rouba o título. Afinal, a coisa por lá anda num rebuliço de dar gosto e água na boca.
Há alguns anos o título foi da cabocla Teresa Cristina, depois adejou sobre os cabelos claros de paulista Verônica Ferriani e quase pousou em Mariana Aydar, também paulista, o que certamente lhe seria um peso. Roberta, que é mulher de Pedro Luís (de A Parede e do Monobloco), faz, como Diogo Nogueira e a turma do Casuarina, o que agora se chama de samba de raiz. Digo agora porque ninguém sabe exatamente o que é o samba de raiz. (Diga-se, entretanto, que eles não desmerecem o tratamento. Estão, de fato, cuidadosa e organizadamente, estudadamente, buscando formas de recontar a história.)
Já Pedro Luís, carioca suburbano, crescido ouvindo fundo de quintal, choro e funk, não é tão "de raiz", uma vez que incorpora certos sotaques percussivos do pop internacional de mercado à ênfase rítmica de seu (excelente, aliás) trabalho. Como o faz Seu Jorge, contemporâneo dele, também suburbano, ex-morador de rua e hoje estrela internacional, embora sem o aparato publicitário (salvo o que ele mesmo articula) que distinguia, até a década passada, as assim ditas estrelas internacionais.
O sotaque pop de Pedro Luís informa a música "de raiz" (mais uma vez: as aspas não são pejorativas, mas interrogam a expressão, ou o uso dela) de Roberta Sá, uma fã de carteirinha (eu também sou) do chuleiro e sambista baiano Roque Ferreira, herdeiro da linguagem dos pretos do recôncavo que migraram para o Rio em fins do século 19, linguagem que deu origem ao samba carioca, como o entendemos.
Curiosamente, de fato, o toque seco do instrumental de Roberta Sá aproxima-se muito mais da origem do samba do que a música, por exemplo, de Sinhô, auto-intitulado rei do gênero, ou de Donga, autor de "Pelo Telefone", primeiro registro fonográfico com o nome samba. À gravação, no entanto, o historiador Almirante chamou, em 1917, de "verdadeiro tango". Era, de fato, um maxixe com sotaque levemente alterado e acentuação tônica muito diferente do que se considera samba verdadeiro, original, de raiz. Ainda assim, o primeiro samba.
Chama-se samba verdadeiro ao samba carioca tal como registrado em disco a partir do início do século 20. Mas ele foi maxixe lá nos primeiros tempos, paródia de salsa (os cubanos têm horror a esse nome genérico. Para eles, a palavra é rumba, de origem espanhola, apesar da semelhança morfológica com o banto, nigero-congolês, do nosso samba) nos anos em que Carmem Miranda migrou para os Estados Unidos, abolerado nos anos 1950, próximo do jazz na década seguinte. Pode-se dizer que somente no fim dos anos 1960, com o príncipe Paulinho da Viola comandando a festa, houve um olhar afetivo e efetivo (e colheita produtiva) do que existiu na origem. Com a vantagem de serem ali lançadas sementes para quem ainda vinha.
Naquele momento, porém, a indústria fonográfica começa a adotar a selvageria antropofágica que, entre outros fatores, definiu seu fim (a indústria fonográfica acabou, pois não?). De forma que restaram para contar a história, nos anos 80, alguns bravos guerrilheiros do naipe de Beth Carvalho e Zeca Pagodinho. Estes, os mais expostos. Porque os outros e eram muitos, muitos, geniais ficaram à sombra. Nem mesmo Dona Ivone Lara, uma das maiores melodistas do mundo (em qualquer gênero), nem Délcio Carvalho, nem Nei Lopes, nem Wilson Moreira, nem Ivor Lancelotti, nem mesmo Nelson Cavaquinho apareceram como deviam.
E nem é preciso falar do pagode paulista. Nem do funk dos morros dos subúrbios do Rio (o antropólogo Hermano Vianna, que serve de ouvido ao ministro Gilberto Gil em questões de música popular, chega a falar de um "funk de raiz", criado nos grotões violentos e miseráveis em torno da Baía da Guanabara). Porque são fenômenos de mercado. E mercado não tem, nunca teve e, por definição, não pode ter coisa alguma a ver com cultura.
Pretendi, com essas poucas linhas, dizer que o samba, a entidade, que nasceu marginal, criou-se e sobreviveu marginalmente. Havia alguém e a história não contará, pois não há documentos ou memória viva compondo samba à sombra de Sinhô e Donga, abafado pelos trios mexicanizados de classe média dos anos 1930 e 40, escondido pela tristeza conspícua (muito cabocla, por sinal) da criação de Antonio Maria e Dolores Duran, soterrado pela avalanche virtuosística dos músicos da bossa nova.
Foi preciso chegar ao fundo do poço seco com o pagode e o funk carioca para que alguma coisa mais próxima do samba legítimo começasse a aflorar como fenômeno digno de atenção. E aí estão Teresa Cristina, Diogo Nogueira, o quinteto Casuarina, Roberta Sá e as outras meninas e os outros grupos e compositores que tão bravamente lavram a terra cultural.
E, sim, é claro, eles não fazem parte da indústria. Talvez um dia se possa dizer que o fracasso da indústria da música deu, finalmente, vez à música. Não tenho certeza disso. Mas tenho essa impressão.
Mauro Dias, Jornalista e crítico de música.
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