Luso-africanos
Mia Couto costuma ser o primeiro nome a vir a mente ao pensarmos na literatura africana de língua portuguesa, mas não é o único representante desse universo literário. José Eduardo Agualusa indica outros autores que merecem destaque.
Luandino Vieira é um dos fundadores da moderna literatura angolana. Luuanda (Companhia das Letra, 144 págs., R$34) é a sua obra editada no Brasil, que traz narrativas curtas inspiradas na oralidade. O tema em questão é a difícil realidade nos bairros pobres de Luanda, onde o autor viveu.
O escritor angolano Ondjaki, é autor de Bom Dia Camaradas (Agir, 141 págs., R$ 29,90), em que faz um relato da guerra colonial entre Angola e Portugal pela visão da classe média. O autor lançou em abril o livro de contos Os da Minha Rua, ainda sem previsão de chegar ao Brasil.
Ruy Duarte de Carvalho assina Os Papéis do Inglês (Companhia das Letras, 184 págs., R$39), livro em prosa que explora a riqueza vocabular do português angolano e os limites humanos em ambientes hostis. A linguagem ficcional aparece como alternativa para suavizar as asperezas do mundo.
O livro mais recente do moçambicano Mia Couto, A Varanda do Frangipani (Companhia das Letras, 152 págs., R$ 32) é citado por Agualusa nas páginas de As Mulheres do meu Pai. O romance é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, morto às vésperas da independência, que "vive" como fantasma sobre uma árvore de frangipani, da flora local. Entre se tornar herói nacional e morrer definitivamente, o carpinteiro mostra um país em reconstrução.
"De quantas verdades se faz uma mentira?" A pergunta sonhada na primeira página de As Mulheres do Meu Pai (Língua Geral, 552 págs., R$34) acompanha cada cena do road movie protagonizado por Laurentina, uma documentarista portuguesa nascida na África que viaja ao continente para conhecer as suas raízes. É o próprio escritor, o angolano José Eduardo Agualusa, o personagem a sonhar com a dúvida inicial. No livro, esse personagem está acompanhado pela documentarista inglesa Karen Boswall, que vive em Moçambique, e pelo fotógrafo português Jordi Burch, Agualusa trança a jornada de Laurentina ao seu próprio percurso pela África Austral.
Em camadas que se espelham, As Mulheres do Meu Pai apresenta os três personagens saídos da realidade às voltas com planos de filmar um documentário sobre três personagens ficcionais, inspirados na realidade. Estes, por sua vez, também planejam um documentário, para contar a vida de Faustino Manso, um popular contra-baixista angolano que Laurentina descobre ser o seu pai biológico. Conhecer a África, portanto, significa para ela a dupla procura por suas origens. Não se trata somente de desvendar o território e a cultura que formam parte de sua personalidade. Luanda, capital da Angola, é também o local onde será enterrado Faustino Manso.
Na companhia de um namorado contrariado, Mandume, para quem "raízes têm as plantas e é por isso que não se podem mover", Laurentina aterrissa em Luanda e faz sua primeira descoberta. Em contraste com as expectativas provocadas pelas memórias do homem que a criou, de quem ouvia que "quem não sabe o que é o cheiro de África não sabe como cheira a vida", o primeiro odor que sente é o de urina. Seus próximos passos seguem marcados pelo estranhamento de um território desconhecido. A intimidade com o novo cenário surge lentamente.
Nascido em Angola, em 1960, filho de uma portuguesa e um brasileiro, José Eduardo Agualusa é o encontro dos três mundos e transporta-os para seus livros. O Ano em Que Zumbi Tomou o Rio (2002), por exemplo, narra histórias de um morro carioca. As Mulheres do Meu Pai concentra-se no passado e presente português e africano. "Com a Laurentina esforcei-me por compreender os novos portugueses de origem africana. Aquilo que sentem, enfrentando preconceitos e divididos entre a cultura do país onde nasceram e a cultura dos seus pais", conta o autor. Faustino é o contraponto genuinamente angolano. "Conheço vários. Um homem sedutor, que crê manobrar as mulheres e que, ao invés, é manobrado por elas", diz Agualusa.
Decidida a reconstituir os passos do pai e a conhecer as tantas mulheres com quem ele teve 18 filhos, Laurentina se embrenha pela África Austral guiada por Pouca Sorte, um motorista que dirige melhor enquanto dorme e que oculta seus mistérios. Na comitiva estão também o namorado português de origem africana e um sedutor sobrinho angolano que ela acaba de encontrar, Bartolomeu. As relações amorosas de Laurentina com os dois reproduzem a divisão interior da personagem entre os dois mundos a que pertence.
Convencido da "sutil" fronteira entre realidade e ficção, Agualusa impregna sua narrativa de recursos documentais. A memória e o poder da ficção são as questões que o instigam e o fazem desconstruir as separações entre verdade e invenção, confundindo e iludindo o leitor com a profusão de vozes e a fragmentação das cenas. As experiências de Agualusa, Karen e Jordi invadem a história e desvendam a fonte de inspiração para alguns personagens, como no diálogo escrito em primeira pessoa pelo autor: "Karen estava sentada na cama, o cabelo castanho em desalinho. Disse-lhe:/ Sonhei com Laurentina.../ A sério? Isso é bom. As personagens começam a existir no momento em que nos aparecem em sonhos./ No meu sonho ela era indiana."
O racismo e a política inclusive a infeliz declaração de Lula de que a Namíbia nem parece estar na África são naturalmente discutidos em meio à ficção, assim como o machismo e as crenças sobrenaturais do povo africano. A quebra da fantasia é ainda maior quando Agualusa, à altura da página 38, resume a história que contará e antecipa a descoberta final. Em vez de matar a expectativa, a estratégia inusitada consegue inflá-la. O escritor tem domínio das linhas narrativas e do trançado que faz delas, soltando fios ao acaso para, mais tarde, laçá-los em coincidências ("onde a vida triunfa sobre a literatura").
Lusofonia
José Agualusa está entre os autores do primeiro time da literatura africana e de língua portuguesa. Este ano, o angolano venceu o Prêmio de Ficção Estrangeira concedido pelo jornal inglês Independent. O Brasil foi o país escolhido para o lançamento mundial de As Mulheres do Meu Pai, o seu sétimo livro. A decisão se deveu à publicação pela Língua Geral, da qual Agualusa é sócio, a primeira editora nacional a se dedicar exclusivamente a autores lusófonos.
Agualusa acredita que os autores brasileiros foram fundamentais para a formação das literaturas africanas de expressão portuguesa, especialmente em Angola. Se em um momento anterior a poética de Guimarães Rosa, Jorge Amado e Manoel de Barros atravessou o Atlântico, agora o que acontece é o refluxo, com escritores africanos que conquistam notoriedade e admiradores por aqui.
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