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Não-ficção

A memória do vinho

Jonathan Nossiter defende a ideia da produção vinícula como um patrimônio cultural e a expressão da história das civilizações

Jonathan Nossiter (com a câmera na mão) em cena do documentário Mondovino, indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2004 | Divulgação
Jonathan Nossiter (com a câmera na mão) em cena do documentário Mondovino, indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2004 (Foto: Divulgação)

O cineasta e escritor Jonathan Nossiter passou um mês longe dos filhos, as gêmeas Miranda e Capitu, de 4 anos, e Noah, de 3. Na última segunda-feira, quando falou por telefone com a Gazeta do Povo de sua casa no Rio de Janeiro, o americano casado com uma paulista e radicado no Brasil se desdobrou para dar um pouco de atenção às crianças e contar do filme que está finalizando (motivo da ausência de um mês), Rio Sex Comedy, sobre as aventuras de um grupo de estrangeiros na capital fluminense, e do livro publicado há pouco no Brasil e nos Estados Unidos.

Gosto e Poder (Liquid Memory, memória líquida, em inglês) mistura as lembranças do autor com textos sobre vinho e cinema. Não dá para dizer quem influencia quem porque filmes e vinhos são experiências marcantes na vida de Nossiter. Tanto que relaciona pessoas conhecidas e situações vividas com garrafas de brancos e tintos.

Para continuar falando do homem e da obra, é preciso explicar, ainda que de modo grosseiro, o que é terroir. A palavra francesa não tem tradução e é usada para designar um conjunto de elementos (terreno, clima, profundidade das raízes das parreiras) que têm influência nas características do vinho. Nossiter, por motivos que você já vai entender, é chamado de "terroirista".

Em 2004, ele concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes com o documentário Mondovino. A partir de uma viagem por alguns dos principais vinhedos da Europa, ele mostra os efeitos catastróficos – na sua opinião – da lógica ianque de mercado sobre a identidade dos vinhos europeus. Um dos casos mais célebres é da região de Bordeaux, que alterou sua produção e sua identidade para agradar o crítico americano Robert Parker, obter uma boa nota (ele atribui entre 50 e 100 pontos) e vender caro as garrafas mundo afora.

"Vinho não deve ser avaliado de modo objetivo", diz Nossiter, para quem a companhia pode influenciar muito a qualidade do vinho. Pela sua filosofia, não adianta nada beber uma garrafa importante se não estiver bem acompanhado – assim como existem vinhos próprios para se beber sozinho.

Em Gosto e Poder, Nossiter diz que o vinho "é, antes de tudo, a expressão de um lugar, portador de uma identidade coletiva, da história de uma civilização local e da história de sua relação com uma natureza específica". A certa altura, o escritor traça um paralelo entre o vinho e o ser humano, observando, por exemplo, que a bebida na garrafa tem uma expectativa de vida semelhante à de um homem: entre 60 e 80 anos. "A expressão da memória do vinho está em perpétua evolução biológica – tal como a nossa. A memória do vinho é a que mais se parece com a memória dos homens", diz.

O ex-sommelier defende que o vinho é um bem cultural. "Ele foi sequestrado nos últimos 20, 30 anos, transformado em símbolo e agente de ascensão social e explorado politicamente", afirma, num português fluente marcado pelo sotaque americano. Nossiter é bem informado e critica a "política antidemocrática de impostos sobre o vinho" do governo brasileiro ao passo que elogia iniciativas individuais, notadamente a do importador Ciro Lilla, dono da distribuidora Mistral, e de produtores pequenos que investem em vinhos orgânicos – como o casal Luiz Henrique e Talise Zanini no Rio Grande do Sul, donos do rótulo Vallontano.

Além da questão do gosto – no caso de Parker, por vinhos frutados e alcoólicos –, existe o problema da elitização. Em alguns dos melhores momentos do livro, Nossiter visita restaurantes famosos de chefs adorados pela mídia especializada e, nas cartas de vinhos, encontra barbaridades. Vinhos que o produtor vende a menos de dez euros a garrafa, comercializados pelo restaurante por mais de cem euros. Vinhos em taça com preços exorbitantes e gostos terríveis (porque as garrafas estavam abertas há tempo demais).

"Primeiro, é preciso parar de falar do vinho do jeito que estão falando", diz o cineasta e escritor. Então interrompe a frase – Miranda, uma das gêmeas, quer mostrar o desenho-surpresa que fez para o pai. "Que lindo! Agora vá tomar banho", diz Nossiter, em inglês. "Agora!"

Ele tem pavor de críticos e enólogos que usam descrições surreais para explicar um sabor. No livro, Harvey Steiman, da revista Wine Spectator, é mencionado. O estilo de Steiman funciona assim: "intensamente aromático, transbordante de fragrâncias e sabores de amora e groselha, matizado com toque de expresso e chocolate contra taninos um tanto areentos. Uma nota de carne confere maior profundidade, enquanto o retrogosto persiste, em oposição aos taninos". Nossiter prefere usar adjetivos que poderiam descrever um filme, como "imprevisível", "expressão de um lugar e de sua história", etc. Ele considera esnobe ou "enochato" aquele que "fala sem sentir". "Conhecer vinho não é uma obrigação para poder apreciá-lo", diz. "Cada um que quer falar (sobre o vinho), tem o compromisso de fazer isso de um jeito pessoal. O meu jeito não faz diferença – eu busquei metáforas no cinema. Entender de vinho é uma porta que existe, está lá, mas não é obrigatório passar por ela. O barato do vinho é fazer o esforço de entender o que você gosta".

Vivendo no Brasil há cinco anos, Nossiter viajou muito pelo país e conhece uma quantidade impressionante de vinhos. Ele acha não apenas possível, mas "necessário" que as pessoas bebam garrafas de baixo custo. "Com esforço, é possível encontrar bons vinhos de 15, 20 reais", diz.O esforço tem a ver com pesquisa. Os vinhos produzidos de maneira artesanal – os orgânicos, que respeitam o terreno, o clima, etc. – enfrentam problemas de distribuição. Não são caros, mas são difíceis de encontrar. Um exemplo é o já citado Vallontano e o Hex von Wein, gaúcho produzido na cidade de Picada Café, a 90 km de Porto Alegre. Outra dica dada por Nossiter é da Cave Geisse, que ele considera o melhor espumante do Brasil, produzido no Rio Grande do Sul pela vinícula Amadeu (a garrafa custa cerca de R$ 40).

Serviço: Gosto e Poder, de Jonathan Nossiter. Companhia das Letras, 302 págs., R$ 49.

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