Quando o professor de Literatura e Teatro da Universidade Federal do Paraná Walter Lima Torres precisou de alguém para falar sobre memória e alteridade, a escolha ficou fácil. As Folhas do Cedro, premiado trabalho de Samir Yazbek, de São Paulo, é todo baseado na lembrança e na imaginação do passado. Se não bastasse, a peça está em cartaz em Curitiba. O dramaturgo e diretor foi então convidado para integrar o 1.° Ciclo de Dramaturgia, realizado até ontem no Mini-Guaíra, e conversou, por telefone, com a Gazeta do Povo:
De que forma aparece a memória em As Folhas do Cedro?
A peça está toda centrada na figura da narradora, uma mulher que vive hoje em São Paulo e, por meio da memória e da imaginação, vai contando a história de seus antepassados para o público. Ao mesmo tempo, ela resgata a história dos pais, tendo como pano de fundo a ditadura. Entra também a imaginação sobre a memória, um elemento bastante importante porque a memória é muito duvidosa, e, por isso, a peça constrói também um universo ficcional. Tem ainda um aspecto lúdico e mágico, representado pela figura de uma criança que surge e é fundamental para o desenrolar da trama.
Quem é ela?
Em alguns momentos, é a própria mulher, depois sua mãe... na verdade, toda a peça se passa na cabeça da protagonista. Quando o público entra, ela está em casa, mandando e-mails, bebendo vinho, e, naquele espaço do palco, que é um ateliê, ela acaba criando uma arena com areia do chão: os outros personagens orbitam em torno, como se fossem seres da imaginação. Quando ela deseja que uma cena aconteça, invoca a presença dos seres nessa arena. E assim as memórias vão ganhando contornos a peça é uma tentativa de recriar a história dela, mas com uma linguagem poética.
Como você tornou a peça "palatável" para todos os públicos, com tantos elementos fantasiosos?
Surpreendentemente, acho que é um espetáculo que de certa maneira atingiu a todos, porque o teatro não precisa fazer concessões e, sim, dialogar com vários públicos, sem abrir mão daquilo que deseja expressar. Às vezes, são universos mais densos, complicados, e algumas peças conseguem isso e outras não nem sempre eu consigo dialogar com um público heterogêneo e ainda com a crítica.
Em que momento isso deu certo?
O Fingidor, que montei há 12 anos, inspirada em Fernando Pessoa, também tinha a característica de unir esses polos, pelo formato, a narrativa fragmentada, mas também pelo conteúdo, porque fazia o resgate de uma identidade perdida. É um tema que interessa a muita gente, à geração mais madura que sente que o mundo moderno perdeu muita coisa, apesar dos ganhos evidentes.
O que As Folhas... responde a isso?
Ela passa pela ancestralidade, raízes, laços familiares e a questão da subjetividade, que hoje tem sido muito manipulada. Acredito que ela traz um frescor, porque o público a acolheu como se fosse um vento, com ares de outro tempo. Na São Paulo de hoje, ela se reporta a quando a protagonista faz uma visita surpresa ao pai, que trabalha como empreiteiro nas obras da Transamazônica, nos anos 80. Ela está dentro de um hotel, à beira da estrada, e conta a história de quando a mãe foi buscar o pai. A história reflete, assim, a divisão entre a filha que ficou e o pai que foi viver o sonho da modernidade. Trata-se de equilibrar esses dois extremos e reconciliá-los.
A escolha pela Transamazônica tem a ver com isso...
A estrada estava muito vinculada ao sonho dos ditadores de unir o país, e que se mostrou algo faraônico para a realidade brasileira da época sem contar os estragos e perdas humanas que trouxe. E isso se reflete na mãe, e nela, que estava na barriga.
Que registro você utilizou?
Misturo o dramático as cenas acontecendo com o épico na medida que a narrativa interage com a plateia, a memoria surge, e o elemento mágico da criança surpreende o publico. A narradora traz um encantamento, mas acho melhor não dizer o que ela faz...
Seu texto sofreu influência de Antunes Filho, com quem você estudou?
Uma coisa que aprendi com ele foi exatamente o contrário buscar meu próprio caminho, minha voz, algo que não é fácil. Buscar o tema que te interessa, e dizê-lo da melhor maneira possível. O conhecimento técnico é importante, conhecer o ofício para expressar aquilo que se deseja, ter uma postura ética diante do trabalho, respeito com indivíduos e a sociedade em tudo isso e mais um pouco sou devedor aos oito anos em que eu e o Hélio Cícero que na peça faz o papel do imigrante estudamos com Antunes Filho. Assim como Luís Melo, que espero que vá assistir à peça.
Você diz que ela não é biográfica, mas você tinha uma inquietação relacionada à etnia?
Sou filho de imigrantes libaneses e, portanto, a peça tem um pouco da história dos meus antepassados, principalmente no contraponto entre o moderno e o tradicional, e o sagrado e o profano.
A peça te ajudou nisso?
Tennessee Williams disse uma vez que foi cobrado a vida inteira por falar de si em suas peças, mas que não conseguia conceber um autor que não fale da sua vida. Acredito que a arte é sempre sobre como se traduzir em forma artística para conseguir superar certas questões e dificuldades. A peça propõe uma trajetória em direção à autonomia do indivíduo, porque a mulher começa em frangalhos e, após o mergulho na história do pais, sai mais leve e transformada. Talvez venha daí a boa recepção da crítica. Por que a peça interessa a outras etnias?
Não há uma ênfase libanesa ou árabe, porque o Brasil é muito formado por imigrantes, e a peça trabalha com todos eles. Há, por exemplo, diálogos muito fortes entre uma gerente de hotel alemã disputando terra com um português.
Quais são seus próximos projetos?
Debruço-me agora sobre uma peça inspirada no mito do Fausto, que deve estrear no fim do ano ou no começo de 2012. E vamos viajando com as As Folhas do Cedro.
Serviço
As Folhas do Cedro. Sesi/Cietep (Av. Comendador Franco, 1341 Jardim Botânico), (41) 3271-9594. Hoje, às 20 horas, e amanhã, às 19 horas. R$ 30 e R$ 15 (meia).
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