Opinião
Paulo Camargo, editor do Caderno G
Umas duas escritoras
Com Uma Duas, nasce uma outra Eliane Brum. A repórter premiada, dona de um dos melhores textos do jornalismo literário brasileiro, não se aposenta, felizmente.
Mas é importante dizer que, apesar de cohabitarem um só corpo, as duas não compartilham da mesma dicção.
Em seus perfis e reportagens, Eliane busca obsessivamente dar voz a personagens da vida real, quase sempre anônimos, muitos deles marginais, deixando-se impregnar por suas histórias de vida. Evita reafirmar clichês e também foge da tentação de reduzi-los a meras vítimas da ordem social. Prefere problematizá-los, à procura de sua dimensão mais humana, numa tentativa aproximá-los dos leitores.
De certa maneira, Uma Duas faz o caminho inverso da produção jornalística de Eliane. A autora se apropria de um tema corriqueiro, e frequentemente idealizado, como a relação entre mãe e filha, para tecer uma narrativa que consegue, ao mesmo tempo, arrebatar e mastigar o leitor, flertando com o grotesco, o cruel e o escatológico, mas sempre navegando pelo mar dos afetos. Quase todos mal resolvidos.
O vínculo entre Laura, uma jornalista com tendências masoquistas e autoflagelantes, e sua mãe, Maria Lúcia, uma dona de casa solitária e indisponível emocionalmente, é visceral e patológico. Elas mal se veem, por conta de um passado doloroso (nada pode ser dito aqui, para não estragar a experiência da leitura), mas quando Maria Lúcia é encontrada inconsicente no apartamento onde vive, quase morta depois de um infarto, Laura se vê forçada a cuidar dela, embora não o deseje.
Dessa reaproximação forçada nasce Uma Duas, narrado por ambas, que revelam suas respectivas verdades e dissecam por meio de textos impressos no livro em vermelho, mas em fontes distintas a dor de existir, de conviver uma com a outra, e de, por mais que tentem, não conseguirem se individualizar, porque unidas por uma mesma placenta de traumas, ressentimentos e palavras não ditas. GGGG
Serviço
Uma Duas, de Eliane Brum. Leya, 176 págs., R$ 34,90
Não é fácil para um jornalista se tornar autor de ficção. Em teoria, o salto seria menor, mais seguro, uma vez que as palavras já são ferramentas de trabalho, matérias-primas. Mas isso, na maior parte dos casos, não se confirma na prática. Referência no jornalismo literário brasileiro, a gaúcha Eliane Brum é vencedora do prêmio Jabuti, na categoria Reportagem, pelo livro A Vida Que Ninguém Vê (Editora Arquipelago), compilação de perfis de personagens anônimos de Porto Alegre e região por ela publicados em uma coluna semanal veiculada pelo jornal Zero Hora. Por esses mesmos textos, ela já havia ganho o Esso, maior láurea da imprensa nacional. Depois, veio O Olho da Rua (Editora Globo), reunião em forma de livro de dez reportagens publicadas na revista Época, da qual é colunista.Mas escrever um romance é um processo muito diverso dos procedimentos que Eliane utiliza para a realização de seu trabalho como repórter. "Quando vou fazer uma reportagem, eu me esvazio e me deixo ser possuída pelas vozes dos personagens que vou retratar", disse em entrevista à Gazeta do Povo, concedida por telefone de sua casa, em São Paulo.
Seu romance de estreia, Uma Duas, não foi concebido assim.
Confessando que não partiu para a ficção antes porque "não se sentia pronta", Eliane revela que não sabe exatamente de onde veio a perturbadora história de mãe e filha que resolveu contar em seu livro (leia resenha nesta página). Ela conta ter percebido que havia dentro dela palavras, imagens, das quais suas reportagens não poderiam dar conta. "Foi resultado de uma perturbação. Eu fui sendo tomada por essa história."
Quanto tempo levou para escrever Uma Duas? Eliane não sabe precisar, porque, antes mesmo que ela começasse a digitá-la em seu computador, o romance já estava sendo escrito em sua cabeça. A história, que apesar de Eliane ser mãe (de Maíra, de 29 anos, hoje psicanalista), não tem traços autobiográficos conscientes. O que não significa que seja menos pessoal e nada tenha a ver com a sua vida e sua história.
Na trama, as personagens centrais, Laura (a filha) e Maria Lúcia (a mãe) vivem uma relação devastadora na qual as duas se digladiam numa luta inócua, tentando cortar um cordão umbilical invisível, de se descolarem uma da outra, tanto física quanto emocionalmente. Se conseguem, cabe ao leitor descobrir.
"Tive noites de insônia. Emagreci, não conseguia ler", diz a autora sobre o duro processo criativo. Até determinado momento, conta Eliane, Laura batizada em homenagem à personagem central (uma galinha) de A Vida Íntima de Laura, livro infantil de Clarice Lispector era a única que tinha uma voz na narrativa de Uma Duas. "Uma madrugada, eu acordei ouvindo a voz da mãe, Maria Lúcia, e achei que estava ficando louca. Ela começava a contar a sua história, insistindo para ser ouvida." Valeu a pena ter cedido ao apelo, garante Eliane, que agora enfrenta o frio no estômago de ser uma autora estreante aos 44 anos.
Vício
"Minha infância foi um lugar inóspito." Para explicar de onde veio o desejo de se tornar escritora, Eliane teve de voltar no tempo. Na semana de lançamento de Uma Duas, a autora contou que o anseio de inventar histórias nasceu, assim como ela, na pequena Ijuí, município do noroeste do Rio Grande do Sul. Filha temporona de um casal de professores, ela buscou nos livros um refúgio para a solidão natural vivenciada por uma criança que cresce cercada de adultos. "Era uma forma de escapar, ser outras coisas, ver outros mundos."
Primeiro, a pequena Eliane recorreu às estantes da biblioteca de sua casa. "As roupas que eu vestia eram todas herdadas, porque não tínhamos muito dinheiro. Mas nunca faltaram livros." Depois, quando ela já começava a esgotar suas possibilidades de leitura no aconchego do lar, passou a frequentar uma livraria vizinha, onde, aos poucos, conquistou a simpatia dos funcionários e o direito de fuçar, até mesmo de escalar os degraus de uma escada para chegar às prateleiras mais altas, e de procurar o que quisesse, inclusive obras para adultos. "Deixavam que eu ficasse ali, sentadinha, lendo. Depois, passaram a me consultar para saber o que era bom e o que não era, imagina. Eu era uma menina com 9,10 anos."
Essa relação de proximidade com a palavra escrita evoluiu para uma espécie de obsessão. Da obra de Monteiro Lobato, devorada com avidez, ela partiu para outros autores. Dos títulos infantis, ela cita A Fada Que Tinha Ideias, de Fernanda Lopes de Almeida, renovadora da literatura infantil brasileira nos anos 70. "É um livro mágico que até hoje faço questão de dar a todas as crianças que eu conheço." Também cita o romance de formação Demian, do alemão naturalizado suiço Herman Hesse, que venceu o Nobel de Literatura em 1946. "Esse é um que eu dou de presente a todo jovem que faz 17 anos", conta, rindo.
Depois, à medida em que a menina se tornava adolescente, caíram em suas mãos livros do conterrâneo Erico Verissimo, Jorge Amado e José de Alencar, entre os outros com os quais desenvolveu uma mania: quando gostava de um autor, precisa ler toda a sua obra. "Aconteceu isso com Alencar. Comecei com Lucíola ou A Pata da Gazela, não lembro mais, e depois não parei mais. E olha que nem gostava dele tanto assim. Quando descobri [Honoré de] Balzac, outra paixão, tive de ler A Comédia Humana inteira." Entre seus favoritos, também estão Philip Roth, Ian McEwan e J. M. Coetzee. "Leio para viver."
O estranho é que, embora atribua a seu vício pela leitura tanto o fato de ter se tornado jornalista quanto a pulsão mais tardia de escrever ficção, Eliane confessa que, durante o período de gestação de Uma Duas, parou completamente de ler, algo que jamais havia ocorrido em suas duas décadas de carreira como repórter. "Não conseguia."
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