O mais afamado trecho de Os Sertões revela bem o estilo empolgado e empolgante de Euclides:

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"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a His­tória, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados."

Mais que a grandiosidade cinematográfica e o detalhamento jornalístico, é a grandeza ética que faz de Os Sertões um livro extraordinário. Ao contrário do pântano ético de Machado de Assis, que destila sua niilista visão do mundo escondido atrás de protagonistas narradores como os canalhas Bentinho e Brás Cubas, Euclides é todo transparência e sinceridade, com coragem de atitudes, visão humanista, compaixão e solidariedade.

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Antes de escritor, Euclides foi o cadete que, durante inspeção pelo ministro da Guerra, saiu de forma, atirou o sabre ao chão e interpelou o ministro, tornando-se símbolo de polêmica nacional sobre o direito de expressão política dos militares.

Desligado do Exército, foi reintegrado ao novo regime republicano, mas logo, sempre por motivos éticos, passou a criticar o governo nos jornais. Acabou castigado, e desligou-se para ser engenheiro do governo de São Paulo. Aceita então o convite do jornal O Estado de S.Paulo para ser correspondente na campanha militar contra Canudos.

Vai com a visão, que o governo passava ao país, de que a revolta dos jagunços era monarquista e delirantemente fanática. Diante dos fatos, passa a narrar honestamente, pautado pela verdade dos próprios fatos, a guerrilheira (e portanto socialmente apoiada) revolta de sertanejos, esquecidos pelo governo mas a sofrer seus desmandos, a eles reagindo heroicamente. Nas reportagens Euclides omite, porém, os massacres de prisioneiros, que no livro relataria arrependido, em mais um lance de superação ética.

Corajosas também foram suas revelações sobre o despreparo técnico e ético dos militares, que muitas vezes agiam barbaramente com os civis, enquanto se atrapalhavam tanto nas manobras que pareciam nem precisar do inimigo para ser derrotados. Ex-militar, Euclides fica longe do corporativismo aristocrático ou militar que então tanto prejudicava a nação, e que hoje continua prejudicando com o sindicalismo pelego, o onguismo corrupto, as quadrilhas políticas e o funcionalismo conivente, cevados pela cidadania omissa.

Euclides, tirando as traves dos olhos, registra a dedicação e o heroísmo de alguns oficiais, e a incompetência e covardia de outros. Mas é na visão dos feridos, com fraterna compaixão, que se revela o homem por trás do escritor, ao contrário do "monstro", conforme Manuel Bandeira, embuçado pelas firulas estilísticas de Machado de Assis.

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Sua visão humanista também foca mulheres e crianças, num tempo em que eram vistas quase sempre de forma distante e estereotipada. Trecho exemplar:

"Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra – a velha mais hedionda talvez destes sertões – a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores (...) rompia, em andar sacudido, pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina (...) e essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. (...) Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha."

A frase "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", tornou-se emblema da visão compreendedora de Euclides sobre os jagunços e sua revolta. Mas seu olhar também procura mostrar as reações do Brasil-litoral às surpreendentes revelações do Brasil-sertão, relatando as reações da imprensa e dos políticos, do povo perplexo diante das procissões de feridos retirantes de Canudos, e as convulsões da autoestima republicana diante daqueles horrores pela República mesma gestados.

Como contraponto à cultura oficialesca que só trabalha se subsidiada pelos governos, Euclides escreveu seu livro, baseado em suas reportagens, numa cabana de poucos metros, coberta de zinco, à margem do rio onde supervisionou construção de ponte em São José do Rio Pardo. Escreveu à luz de lampião, depois de esperar o zinco esfriar da quentura do dia, mas nem por isso devemos ser complacentes com os defeitos de Os Sertões.

Obedecendo ao modismo positivista, que pregava ser todo evento determinado pela conjunção de ambiente, raça e momento, Euclides dividiu o livro em três partes, das quais a primeira, "A Terra", deve ser evitada por quem não quiser se enfadar com massacrantes e detalhinhosas descrições am­­bientais.

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A segunda parte, "O Homem", já começa a interessar, até porque adianta o perfil de Antonio Conselheiro, o beato líder da revolta. Mas é na terceira parte, "A Luta", que a montanha ética se eleva, página a página tocada pela função do escritor talentoso e envolvente com o repórter investigador e minucioso, animados pelo humanista apaixonado e compassivo.

Apesar do jornal O Estado de S.Paulo recusar-se a publicar o livro, que só saiu com edição custeada em parte pelo escritor, Os Sertões foi imediatamente aclamado por leitores empolgados e estupefatos. Li pela primeira vez aos 16 anos, reli aos 30, aos 45 e aos 59, e sempre, como da primeira vez, ao final foi como chegar ao alto de uma montanha. Uma montanha tão inspiradora que motivou Mário Vargas Llosa a escrever a também obra-prima A Guerra do Fim do Mundo.

Também inspirou Glauber Rocha e Sérgio Ricardo, no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, a consagrarem os versos do Conselheiro – "o mar vai virar sertão, o sertão vai virar mar" - como expressão da promessa de progresso espantoso que espera este país, quando superar sua carência essencial, que é de ética.

Valha-nos, Euclides!