Participei certa ocasião de uma mesa-redonda numa rádio na qual se discutiu a respeito de literatura e hábitos de leitura. Entre os que lá estavam, havia uma professora de literatura inglesa cujo nome esqueci, o que não me faz falta. Lá pelas tantas, como o assunto chegasse à literatura infantil, ela citou autores de língua inglesa que deveriam ser lidos nas escolas.

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Ninguém discordou, mas todos nós lembramos de autores brasileiros que deveriam fazer parte da dieta literária dos jovens estudantes. Citamos vários escritores, entre eles Monteiro Lobato, como seria óbvio.

A professora reagiu. Disse que não gostava de Lobato e resmungou:

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– Não entendo por que ele insiste em chamar Tia Nastácia de negra.

Interferi na hora:

– Talvez pelo fato de ela ser negra...

Fui olhado com espanto e algum ódio por uns instantes e, como a coisa poderia desandar – estávamos no ar – trocou-se de assunto.

Agora, quando se discute no Ministério da Educação se Monteiro Lobato deve ser banido das bibliotecas escolares acusado de racismo, lembrei-me dessa professora. Sei, é claro, que o Brasil é o país das polêmicas inúteis. Das polêmicas rasteiras e vazias, movidas por desinformação e essa tolice que se chama de politicamente correto – ou por puros oportunismos partidários. Por isso resisti a escrever a respeito, imaginando que, diante de tantos problemas sérios que temos a resolver, essa bobagem sumisse do cenário em no máximo uma semana. Não sumiu.

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Então, vamos lá. Há na história do Brasil várias figuras públicas ilustres que foram ou tangenciaram alguma forma de racismo. Aliás, desde sempre o racismo esteve presente em nossa história, sendo que no século 19 e início do 20 alcançou um sucesso enorme, quando era qualificado de "científico". Deixo de citar tais autores brasileiros com traços racistas – temendo que venham a ser perseguidos por alguma ONG de plantão – e dou como exemplo um autor estrangeiro. Que se leia Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss – uma obra monumental e definitiva – e encontraremos aqui e ali rastilhos de preconceito contra portugueses, negros e índios. Ora, apesar de sua genialidade, Lévi-Strauss era um francês, um homem mergulhado numa cultura europeia tradicional.

No entanto, esses traços preconceituosos não diminuem em nada o caráter monumental de sua obra. Não deixam nela nenhuma nódoa.

Todos nós somos de alguma forma marcados por expressões, palavras, ideias que, lá no fundo, escondem as circunstâncias ideológicas da época em que vivemos. Ninguém escapa. Tomei o exemplo de Lévi-Strauss, como poderia citar outros, como Franz Boas ou Edgar Rice Burroughs, o autor das histórias de Tarzan, nitidamente marcadas por preconceitos colonialistas da era do império inglês, no qual o sol não se punha. E, se não nos limitarmos a ler bobagens politicamente corretas, encontraremos em inúmeros textos, de cientistas ou de escritores, brasileiros ou não, sinais de restrições ao diferente – seja em raça, em cultura, em comportamentos etc.

Há uma frase de Dostoievski, no romance O Jogador, que me parece exemplar. Lá pelas tantas, surge num cassino um sujeito posudo dizendo-se conde. Dostoievski registra: "Bom, todo polaco é um conde quando em viagem."

Nas acusações contra Lobato, a coisa me parece mais grave, pois de sua obra não resulta o racismo. Tia Nastásia é uma personagem admirável, deliciosa, bem como o Barnabé, também negro. E o Saci é um moleque inteligente e espertíssimo. Além disso, quando chama de negra ou de negro uma personagem, quer dizer apenas isso: trata-se de um negro. O eugenismo de Lobato não distorce sua ficção. Lembro, a propósito, um grande amigo, infelizmente falecido muito jovem, Paulo Colina – poeta, contista, tradutor de Bashô, figura notável. E negro. Daqueles retintos. Quando nos encontrávamos, ele me dava um abraço gigantesco e dizia, com sua voz rouca de cantor de blues:

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– Vamos ali no Redondo tomar uma cervejota com o negão.

Colina era, em São Paulo, um respeitado ativista dos direitos dos negros.

Mas os tempos eram inteligentes. Jamais alguém imaginaria reescrever Lobato ou redigir notas para que os jovens lessem "da maneira certa" os seus livros. Os censores, durante a ditadura militar, é que achavam que havia uma maneira "certa" de ler um livro – ou que o "certo" era não ler um livro. Eram sujeitos de uma burrice avassaladora. Um deles mandou prender Sófocles, por achar que aquela peça, Édipo, entre outras coisas, era um incentivo ao incesto. Politicamente correto, ele.