Opinião
Filme subverte o melodrama
Paulo Camargo
Não espere de Praia do Futuro um melodrama marcado pelo tradicional arrebatamento do gênero, embora sua sinopse talvez sugira uma trama com esses contornos. Sim, o ponto de partida da história é uma tragédia: o motociclista e mecânico alemão Konrad (Clemens Schick), ex-soldado da guerra contra o terrorismo no Afeganistão viaja pelo Brasil com seu companheiro de pelotão, que, ironicamente, morre afogado nas águas de uma praia paradisíaca em Fortaleza.
Konrad acabará se envolvendo, justamente, com Donato (Wagner Moura), o salva-vidas que falhou na tentativa de salvar seu amigo (e amante). O jovem brasileiro deixará tudo família, emprego e o passado , para viver perto dele, em Berlim.
Só que o filme de Aïnouz (também diretor do ótimo Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo) subverte a expectativa criada por sua premissa. É uma obra lacunar, que dá saltos narrativos e evita explicar-se demais. Tampouco investe alto no sentimentalismo, embora seja muito tocante como na dilacerante e magnífica sequência de reencontro, depois de muitos anos, entre Donato e seu irmão mais novo, Ayrton (Jesuíta Barbosa), que vai até a Alemanha fazer um doloroso ajuste de contas.
Visualmente estonteante, com planos de hipnótica beleza, do início ao fim, Praia do Futuro vai bem além do mero exercício estético. Cada cena e sequência tem sua razão de ser, por vezes negando o que parece oferecer, optando pela contenção, pelo silêncio.
Donato é um herói combalido, que o irmão, quando pequeno chama de Aquaman. Sua coragem é reescrever sua história, partir para se encontrar. Ayrton, autointitulado como o piloto Speed Racer, que nos animês japoneses dos anos 1970 buscava o irmão desaparecido, o Corredor X, vai atrás dele em busca de um desfecho, no qual Konrad terá papel fundamental. Para que todos, como diz o refrão da canção "Heroes", de David Bowie, que fecha o filme, "possam ser heróis para sempre". Se conseguirão, cabe, talvez, ao espectador decidir. GGGG
O salva-vidas Donato, protagonista de Praia do Futuro, longa-metragem do diretor cearense Karim Aïnouz que estreia hoje nos cinemas brasileiros, já havia, de certa forma, dado o ar de sua graça antes na obra do cineasta (veja o serviço completo no Guia Gazeta do Povo). No curta-metragem Paixão Nacional, filmado em película 16 milímetros há duas décadas, no início de sua carreira, Aïnouz (de O Céu de Suely) havia contado a história de um jovem nordestino de classe média baixa que, ao mirar a imensidão do oceano, sonhava em partir e reconstruir sua vida em outro lugar.
Vivido com uma sutileza ao mesmo tempo sensível e feroz pelo ator baiano Wagner Moura, Donato é, nas palavras de Aïnouz, um cearense típico em muitos aspectos. "Fala pouco, é envergonhado. tem pouco a dizer sobre si mesmo", descreve o cineasta, para quem o personagem é mais um elemento da intrigante paisagem da praia de Fortaleza que dá título ao seu filme, um dos lugares onde há maior concentração de sal no mundo, o que faz com que nada por lá dure muito tempo, e tudo se desintegre, inclusive os sonhos.
Em entrevista à Gazeta do Povo, concedida por telefone de São Paulo, Aïnouz afirma que Donato é mesmo um tanto exemplar. Como tantos jovens do Ceará, ele parte, sem olhar para trás. A maior parte pega a estrada rumo ao sul do país em busca de melhores condições de vida, por questões econômicas. Donato, não: seu exílio é de outra ordem. Bem mais existencial, emocional. "Eu também saí de casa muito cedo, aos 18 anos, para conhecer meu pai, que é argelino, e estava exilado na França", contou o cineasta.
Afogamento
Em um dia como outros tantos de trabalho de Donato, dois rapazes alemães, praticantes de motociclismo de aventura, surgem na Praia do Futuro. E mergulham em suas águas salgadas. Um deles se afoga, embora o bombeiro se desdobre em esforços para salvá-lo.
Visto pelo irmão mais novo, Ayrton, como o super-herói Aquaman, Donato sente nos ombros o peso do fracasso e, para se redimir, aproxima-se de Konrad (Clemens Schick). Quer dar-lhe apoio, devolver-lhe o companheiro. O rapaz, um mecânico de Berlim especializado em motos, acaba o atropelando emocionalmente.
Os dois se aproximam e surge entre eles uma paixão, que levará Donato à Alemanha, para uma visita, da qual ele não retornará. E, ao tomar essa decisão, ele apagará seu passado, como o salitre presente no ar da Praia do Futuro.
A vida abandonada por Donato apenas ressurgirá quando Ayrton, agora um rapaz crescido, vivido por Jesuíta Barbosa (de Tatuagem) desembarca em Berlim para lhe cobrar os anos de ausência, o doloroso desaparecimento de Aquaman.
Sensacionalismo
Aïnouz se diz incomodado com o fato de que parte da imprensa brasileira esteja batendo na mesma tecla: a de que seu longa-metragem seria um "filme gay". O fato de a trama ser protagonizada por Wagner Moura, o capitão Nascimento dos ultraviolentos filmes da franquia Tropa de Elite, um personagem associado ao universo da virilidade, tem muito a ver com essa percepção, e perplexidade. Até porque Donato também é um homem que veste farda um bombeiro cujo uniforme é um calção de banho.
"Acho que essa abordagem redutora sequestra o filme, impede leituras mais profundas e complexas que ele merece", diz o diretor. Aïnouz diz não aceitar que um personagem com tamanha complexidade, em decorrência da forma sensacionalista e apressada com que o filme tem sido visto por alguns, seja resumido à sua orientação sexual. "Ele não é apenas gay."
Depois de participar do processo de lançamento de Praia do Futuro no Brasil, Aïnouz vai preparar a estreia do longa na Alemanha como se trata de uma coprodução entre os dois países, com um ator alemão conhecido no elenco, o filme, bem recebido no Festival de Berlim deste ano, chega aos cinemas de lá em setembro. Depois será lançado na França, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde deve estrear em janeiro.