Nos últimos anos de sua vida, Louis Armstrong se tornou o principal embaixador cultural da América e, em 1964, “Hello, Dolly” derrubou os Beatles do topo das paradas| Foto: Divulgação

Apesar de contribuições incalculáveis para a cultura norte-americana, até hoje não foi escrita uma biografia definitiva de Louis Armstrong (1901-1971). Tal vácuo é preenchido agora por Terry Teachout no livro Pops, recém-lançado nos Estados Unidos. A obra começa falando justamente dessa omissão e explica por que ela se perpetuou por tanto tempo.

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Ninguém duvida que Armstrong tenha revolucionado a música, ajudado a popularizar o jazz por todo o mundo e gerado um número absurdo de imitadores. Mesmo seus contemporâneos mais críticos reconheciam as dívidas que tinham com ele.

"Não se pode tocar coisa alguma no trompete que não tenha vindo dele", dizia Miles Davis. A influência de Satchmo (como era apelidado) se espalhou e tocou inclusive a questão racial. Por meio de discos, espetáculos, filmes, entrevistas e aparições em programas de rádio e televisão, ele foi o primeiro homem negro que milhares de americanos brancos permitiram que entrasse em suas casas e corações.

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Complacente

Por que, então, os eruditos o negligenciavam? Teachout sustenta que seus detratores eram tão críticos e se sentiam tão desconfortáveis com a imagem pública de Armstrong – a testa suada, sorriso reluzente, a empatia com o público, seu jeito agradável –, que acabaram por ignorar inteiramente sua abissal e contínua contribuição para a música e para a civilização. Aos olhos deles, Satchmo era divertido demais, popular demais ou muito complacente para ser levado a sério.

Leia-se muito complacente com os brancos. Por exemplo, Dizzy Gillespie reclamava de seu servilismo caricatural e de sua figura por demais colonial, ao passo que o narrador de um dos contos de James Baldwin menosprezava seu jeito "simplório e antiquado".

Armstrong não tinha vergonha de admitir que gostava dos brancos. "Acredite – os brancos sempre foram decentes comigo", escreveu ele certa vez.

Dada a má reputação entre os negros, que liberal branco ousaria escrever sobre ele, ou enaltecê-lo? A resposta é do principal crítico de cultura e artes do The Wall Street Journal, Terry Teachout. E Armstrong não poderia ter um defensor mais apaixonado. Por vezes, Pops mais parece uma tese de defesa, bastante passional e versada.

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O autor começa pela origem de sua família na região de Storyville, em Nova Orleans, onde Armstrong nasceu em agosto de 1901, filho de um pai que ele mal conheceu com uma serviçal de 15 anos (e possivelmente, prostituta).

Desajeitado

A história segue até os cabarés para onde o jovem Louis escapava para ouvir os trompetistas negros da época como Buddy Bolden, Joe Oliver e Bunk Johnson, e daí para um abrigo para meninos negros indigentes, onde ele teria tocado trompete pela primeira vez, segurando o instrumento de maneira tão desajeitada contra seus lábios que chegou a machucá-los.

A partir daí, Armstrong viajou em navios a vapor pelo rio Mississippi, aperfeiçoando sua habilidade para ler partituras (e talvez tenha desenvolvido sua rouquidão característica), indo então para Chicago, Nova York e retornando a Chicago. Em seus 20 e poucos anos, ele formou seu primeiro grupo de Jazz, o Hot Five and Hot Seven, com quem gravou um disco que Teachout chama de "O Velho Testamento do Jazz Clássico".

Há algo de superficial e forçado nessa parte do livro de Teachout. O esplendor de Armstrong está além de qualquer disputa, mas o autor não parece convencido disso. Talvez não se possa descrever o que há de tão surpreendente em "Potato Head Blues" — quando Armstrong conseguiu fazer um trompete gargalhar –, mas alguém que tenha pensado sobre isso tanto quanto Teachout deveria ao menos tentar, em vez de depender demais (e de modo pretensioso) de Woody Allen para fazer seu trabalho.

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De modo semelhante, sua descrição da ainda mais fantástica "West End Blues" é amontoada de tecnicalidades musicais rebuscadas. O que soa curioso, já que em outras partes Teachout enaltece Armstrong justamente por evitar jargões musicais quando discutia sua música. O livro nos faz consultar os CDs de nossas coleções ou o YouTube, numa tentativa de tentarmos entender do que ele está falando.

Somente quando os críticos começam a desdenhar Armstrong é que Teachout se torna empolgado para defendê-lo. Como sempre, a acusação era uma só: ele havia se vendido, tocando e gravando o que um crítico xiita chamou de "a ideia branca do que é o jazz do Harlem".

Entusiasmo

O biógrafo sustenta que Satchmo – abreviação da palavra satchelmouth (gíria para alguém de boca grande) – estava longe de ser um interesseiro: entusiasmo era parte de sua natureza. E tal entusiasmo funcionava como uma declaração em si, persistindo apesar das décadas de insultos sofridos por ele. (Até mesmo seu parceiro Bing Crosby nunca o recebeu em sua casa.) Para o autor, a maior contribuição do trompetista e cantor para os direitos civis foi o gigantesco amor suscitado por ele, contribuição essa que nem mesmo Martin Luther King Jr. poderia ter feito.

De várias maneiras, Armstrong reconquistou sua reputação bem antes de Teachout aparecer. Durante os últimos anos de sua vida, ele se tornou o principal embaixador cultural da América, recebido por admiradores entusiasmados onde quer que fosse. Detratores como Dizzy Gillespie se retrataram e, em 1964, "Hello, Dolly" derrubou os Beatles do topo das paradas.

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Sagacidade

Teachout também acerta. Agora, todos reconhecem o que o escritor amplamente documentou: não apenas o talento prodigioso de Armstrong, mas sua sagacidade, bem como sua coragem, gentileza, lealdade e charme. Sem esquecer seus hábitos peculiares: ele fumou maconha quase que diariamente por 40 anos – "faz a gente esquecer todas as maldades feitas contra os negros", dizia, e tomou um laxante a base de ervas chamado Swiss Kriss com igual entusiasmo, chegando a elogiá-lo em público.

É impressionante se deparar com tantos grandes músicos — Hoagy Carmichael, Jack Teagarden, Teddy Wilson, Django Reinhardt, Bunny Berigan, Bing Crosby, Gene Krupa — descrevendo Satchmo de modo tão tocante e eloquente.

Murray Kempton observou que "o puro e o simplório, o palhaço e o criador, o deus e o tolo" estavam todos dentro dele. Mas quaisquer que fossem as contradições, elas deixavam de ter relevância, diz Teachout, sempre que Louis Armstrong levava seu trompete até a boca, "pois esse era o momento em que a risada cessava e tinha início a beleza".

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Serviço:

Pops – A Life of Louis Armstrong, de Terry Teachout. Houghton Mifflin Harcourt, 496 págs., US$ 30.