São Paulo – Quando se fizer a história da canção no último milênio, história que remonte às origens da canção napolitana e às canções dos trovadores provençais, um nome resplandecerá num dos pontos mais altos atingidos pelos que se dedicaram a essa arte: Dorival Caymmi. Nada mais natural, por isso, que sua obra seja eventualmente objeto de análise, como se dá agora com o novo número da coleção Folha Explica (Publifolha, R$ 17,90; 120 págs.).

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O volume, de autoria do escritor e letrista Francisco Bosco, vem se juntar a outros dois antológicos textos relativamente recentes, aos quais não à toa se refere em vários instantes: Caymmi: Uma Utopia de Lugar (Perspectiva, 1996), de Antonio Risério; e Dorival Caymmi (de 1994, incluído em 40 Escritos, Iluminuras, 2000), de Arnaldo Antunes – este, originalmente, apenas um release de um disco, porém de alcance profundo.

Bosco se propõe a elucidar o mistério da drástica originalidade do compositor baiano, justamente colocado como o exemplo máximo do "fundamento da canção": a correspondência entre letra e música. Atribuindo sua produção quantitativamente pequena a "uma ética da criação segundo a qual (...) só se devem fazer as canções necessárias", o autor a aborda em suas vertentes básicas: os "sambas sacudidos", os sambas-canções e as canções praieiras.

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Nos primeiros, aponta como foco de sua singularidade o seu caráter feminino, determinado pelo componente do dengo associável ao remelexo, pelo ritmo e pela representação delicada e sensual da figura da mulher. É o contrário do que sucede no samba carioca, marcado pela síncope e pela moral do malandro, e no qual a mulher às vezes é vítima de um tratamento grosseiro.

Sobre os sambas-canções, Bosco reafirma os conhecidos elementos caymmianos diferenciais em relação ao que predomina no gênero: a concisão, o não-derramamento e a inventividade harmônica, precursora da bossa nova. Mas, indo além, observa que é neles que Dorival Caymmi "encontra a história", tornando-se "contemporâneo de seu tempo".

Mais surpreendente é a sua visão do conjunto das praieiras, definido, com razão, como o mais original da "obra sempre original" de Dorival Caymmi.

Bosco aproxima o mundo das praieiras ao das epopéias de Homero: em ambos o homem está adequado, integrado ao mundo e à natureza, não se dando uma laceração entre o seu interior e o exterior, como ocorre no universo dos sambas-canções, em que o protagonista é o "sujeito dividido da modernidade, às voltas com conflitos psicológicos".

Tão próximas na relação com o mundo concreto, tão simples na linguagem, são as letras das praieiras e dos sambas sacudidos. Isoladamente, não se verifica poeticidade nelas: antes, o poético, com grande expressividade e poder de envolvência, surge no espaço das palavras (ao serem) cantadas no seu encontro com a melodia, em suma.

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Papel de destaque desempenha aqui o violão caymmiano, por meio do qual não apenas a letra mas também a música descreve a realidade. Não se trata de um violão de acompanhamento. Ele se isomorfiza às coisas a que cada canção alude, como Bosco revela num dos trechos mais atraentes do livro, nos convidando à audição das gravações que o artista fez, sozinho, de clássicos como "A Lenda do Abaeté", "O Vento", "Canoeiro" e "O Mar". Eu diria mais: que também a voz de Caymmi colabora na criação da atmosfera mágica que se instaura nesses momentos. É (re)ouvir e morrer... O texto de Bosco explica a originalidade da obra de Caymmi com sensibilidade, erudição e elegância, daí advindo a singularidade da sua perspectiva.