Um refletor despenca na cabeça do ator coadjuvante. Uma ereção fora do script surpreende a plateia. Um bate-boca no palco acaba com o ensaio. E o protagonista é flagrado na rua só de cueca – o que, além de vergonha e vexame, produz centenas de milhares de acessos no YouTube.
Com essa sequência de espalhafatos nos ensaios abertos ao público, fatalmente a estreia da peça será um sucesso. Mas, para o diretor e ator principal, Riggan Thomson, interpretado por Michael Keaton no elogiado Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), vencedor do Oscar de melhor filme, pouco importa o triunfo comercial e financeiro. Thomson está quebrado, precisa de dinheiro como nunca, mas precisa ainda mais de uma aprovação intelectual ao seu trabalho – que, no fundo, ele próprio considera medíocre.
Tal aprovação, como um carimbo autenticando “artistas de verdade”, só será possível se uma única pessoa endossar sua peça: a arrogante jornalista que escreve as críticas teatrais no The New York Times.
“Birdman nos faz pensar no seguinte: se comparado ao enorme interesse que a peça despertou na internet, qual seria o peso de uma crítica publicada no jornal?”, questiona Jorge Coli, professor de História da Arte e História da Cultura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Seria um peso bem maior para o ego do ator do que para o público.” É uma boa ilustração do momento por que atravessa a crítica cultural.
Com o atual turbilhão de opiniões, informações, notícias, palpites, vídeos e comentários disputando atenção em murais e timelines, há um recuo gradual no alcance da crítica especializada – que, ao contrário da miscelânea digital, se apoia justamente na profundidade e no conhecimento técnico.
“É inegável que a profundidade perdeu espaço. Viramos leitores de orelhas de livros”, conclui o diretor de teatro e cinema carioca Felipe Hirsch. “Nossa meta é saber um pouquinho de tudo, e nunca muito de uma coisa só.”
Hirsch propõe uma reflexão. Há poucos anos, você ouvia o disco de uma banda, sabia o conteúdo do lado A e do lado B, compreendia a evolução emocional do álbum e, ainda que de forma inconsciente, percebia de onde o artista partia e aonde queria chegar. Corta para hoje. Você tem 1,5 mil músicas em seu celular e ouve todas no modo randômico.
“Não se tem mais noção do que é uma obra. E, se não há interesse pela obra, que interesse alguém pode ter pela análise da obra?” provoca o diretor carioca.
Alguém pode interpretar o panorama como apocalíptico, mas talvez não seja para tanto. Trata-se, em primeiro lugar, de uma evidente mudança na forma de consumir cultura e informação.
O crítico francês Antoine de Baecque, professor de História e Estética do Cinema na Ecole Normale Supérieur de Paris, lembrou que nunca se escreveu tanto sobre a sétima arte quanto hoje.
“Um cinéfilo pode entrar em contato com outro sobre um filme, sobre uma ideia, para dividir suas preferências, sua cultura, seu saber, quer ele esteja em Paris, Roma, Taiwan, Seul, Los Angeles ou Rio de Janeiro. Isso recriou o laço cinéfilo, multiplicou os grupos, os especialistas, desenvolveu as opiniões, os fóruns e os textos críticos.”
A crítica “moderna”
Um exemplo é o da gaúcha Camila von Holdefer, 26 anos, estudante de Filosofia e expoente dessa geração de críticos gestada na web.
Elogiada por escritores de renome como Daniel Pellizzari, Michel Laub e Daniel Galera, Camila alimenta o blog Livros Abertos (livrosabertos.com.br) com longas e detalhadas resenhas, em um estilo cada vez mais raro na imprensa tradicional. A boa audiência lhe rendeu propostas de anúncios para a página. Mas Camila, por enquanto, prefere “não poluir o espaço”.
“No meio de tanta informação, mais do que nunca a crítica tem como papel ajudar as pessoas a fazerem escolhas”, avalia ela. “Mas, assim como o conto ou a crônica, a crítica também é uma modalidade de escrita.”
Ou seja, se o resenhista é bom, você pode ler seus textos sem necessariamente se preocupar em ler o livro, assistir ao filme ou visitar a exposição que é objeto de análise.
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