Culto

• Paula Fox voltou a ser um fenômeno graças em parte a um perfil publicado na revista do jornal The New York Times, publicada aos domingos.

• Por sua vez, o artigo foi inspirado pela defesa apaixonada de um jovem escritor, pouco conhecido à época, chamado Jonathan Franzen – hoje um dos mais importantes de sua geração –, que saiu dizendo para quem quisesse ouvir que Paula Fox é melhor que Saul Bellow, Philip Roth e John Updike.

• Para Franzen, o romance de Fox "parece sugerir que o medo da dor é mais destrutivo que a própria dor". E continua: "como eu queria muito acreditar nisso, reli o livro quase imediatamente. Eu esperava que uma segunda leitura pudesse mesmo me mostrar como viver."

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Autora é avó de Courtney Love, viúva de Kurt Cobain

Hoje com 83 anos, Paula Fox tem uma história incrível de vida e admite que suas experiências pessoais são a fonte principal para a sua ficção. Autora premiada de livros infantis, escreveu seis romances "adultos" e as memórias Borrowed Finery (Roupas Emprestadas em tradução livre), esmiuçando suas infância e adolescência conturbadas – embora o início da vida adulta não tenha sido diferente.

"Tudo o que você conhece é a si mesmo. Se você se conhecer", disse Fox em entrevista ao jornal The Guardian. Filha de uma cubana com um escritor e roteirista medíocre de Hollywood, a escritora foi entregue para a adoção logo após nascer.

Sua mãe fez vários abortos antes dela, mas só descobriu a gravidez de Paula quando era tarde demais. Adotada por um religioso, viveu períodos de tempo na casa de parentes – chegou a passar meses em Cuba – e teve uma filha aos 20 anos. Assim como sua mãe, decidiu dá-la para adoção.

Mais tarde teria outros dois filhos que criaria sem nunca superar o trauma de ter abandonado a primeira. Esta, chamada Linda Carroll, entrou em contato com Paula há cerca uma década.

Linda é mãe da roqueira e atriz Courtney Love, viúva de Kurt Cobain (1967 – 1994). Paula é então avó de Courtney e, para tornar as ligações ainda mais curiosas, bisavó de Frances Bean, filha de Cobain, lendário vocalista da banda Nirvana.

Hoje, Paula Fox é cultuada – literalmente – por escritores da nova geração como Jonathan Franzen, David Foster Wallace e Jonathan Lethem. O primeiro é o principal responsável pela redescoberta dos livros adultos de Fox, assinando uma apresentação para Desesperados.

Ela lembra que quis ser escritora desde os 7 anos, influenciada pela profissão do pai. Mas só começou sua carreira aos 43 anos, em 1966.

Fox aparece também entre as personalidades ouvidas pelo cineasta italiano Antonio Monda no livro Deus e Eu – Conversas sobre Fé e Religião, recém-lançado no Brasil. Ela é a única entre os 18 entrevistados a defender sua falta de fé de modo aberto e tranqüilo, deixando o entrevistador exasperado.

Desesperados fala sobre o casamento moribundo de Sophie e Otto Bentwood. Eles vivem no bairro nova-iorquino do Brooklyn. É o final dos anos 60 e, da janela de casa, pode-se testemunhar o esfacelamento da sociedade ao redor. O bêbado que vomita na calçada, pedras atiradas contra janelas, residências invadidas e depredadas.

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O suspense que conduz a narrativa é criado a partir de uma situação banal. (Mais tarde, fica claro que é também simbólica). Sob as críticas do marido, Sophie decide alimentar um gato de rua que aparece na porta de casa. Ela coloca leite numa tigela, que o bichano consome com gosto, e passa a acariciá-lo ao final da refeição. Até que o gato avança e morde a sua mão, a boquinha como um "círculo de arame farpado".

Daqui em diante, o ferimento causado pela mordida vai inchar, sangrar e latejar. Primeiro, Sophie tentará negar a gravidade do machucado – talvez como nega a crise de seu casamento –, embora desconfie que possa ter contraído raiva. Se essa suspeita estiver certa, ela terá de se submeter a um tratamento doloroso de várias injeções na barriga. Antes, é preciso pegar o gato e levá-lo para um exame.

A história se passa em três dias, nos quais Sophie procura alternativas para aplacar o desconforto que sente não apenas na mão, mas na sua vida – tenta comprar utensílios domésticos ou reavivar lembranças de seu ex-amante. Por vezes, dá sinais de desejar o pior. Seria melhor estar contaminada pela raiva do animal do que tentar ignorar o risco, ou não sentir nada.

Otto, o marido, é um sujeito metódico que persuadiu a mulher a não adotar filhos – quando já era tarde demais para ela ter um.

Além de se debater com a crise nos negócios, ele se sente violentado pela decadência que identifica nas ruas, ou relacionada àqueles que não têm a mesma sorte que sua. Marido desinteressado, nunca sequer desconfiou da aventura extraconjugal de Sophie com um de seus clientes.

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O casal está na casa dos 40 anos e tem um círculo social restrito. Tudo indica que eles estão simplesmente enfarados um do outro.

Revival

Publicado pela primeira vez em 1970, o romance de Paula Fox foi redescoberto pelo escritor Jonathan Franzen em 1991, enquanto trabalhava em Yaddo, uma colônia para escritores em Nova Iorque. A indicação partiu de uma colega, Sigrid Nuñez.

Franzen leu uma vez e foi assaltado pela narrativa. Ao longo da década, releu diversas vezes, indicou para várias pessoas, trabalhou com o livro em um curso de Redação Criativa e, por fim, escreveu um ensaio sobre o romance americano em que defendeu Desesperados como uma obra-prima, superior a qualquer outra coisa produzida pelos contemporâneos de Paula Fox. E isso não é pouco, se se considerar que se referia ao Nobel de Literatura Saul Bellow (1915–2005), a Philip Roth e a John Updike.

Mesmo antes de publicar As Correções, que o transformaria em um dos romancistas mais importantes dos EUA, Franzen conseguiu chamar atenção para a obra de Fox. Desesperados estava há quase dez anos fora de catálogo quando foi reeditado em 1999 com uma apresentação do escritor, reproduzida na tradução brasileira pela Companhia das Letras.

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"Não existe praticamente nenhuma palavra estranha ou arbitrária a ser encontrada no livro. Rigor e densidade temática de tal magnitude não acontecem por acaso, e mesmo assim é quase impossível para um escritor obter isso e ao mesmo tempo relaxar o suficiente para permitir que os personagens ganhem vida; no entanto, aqui está o romance, pairando acima de todas as outras obras de ficção realista norte-americana desde a Segunda Guerra Mundial", escreve Franzen.

Uma experiência que pode ser interessante é ler a apresentação de Franzen (também) depois de encarar o romance. O escritor relata as descobertas que fez e compreensões que teve em cada uma das seis ou sete leituras do livro, ressaltando a importância de personagens secundários e destrinchando frases, palavras e até os nomes escolhidos pela autora. Sua interpretação é tão apaixonada e bem construída que fica difícil não ser influenciado por ela.

Numa simplificação exagerada, o realismo na literatura americana retrata personagens comuns em situações cotidianas. Segue a lógica da "vida como ela é". Paula Fox, ao menos segundo Franzen, investe no chamado "realismo trágico", capaz de converter os otimistas mais fervorosos.

A crueza com que a escritora aborda temas atuais, se é que um dia a incomunicabilidade entre as pessoas e os percalços da relação a dois não foram atuais, seria uma das razões para o interesse da nova geração de escritores, que nasceu imune ao típico otimismo pró-ativo do sonho americano.

O livro virou filme em 1971 pelo diretor obscuro Frank D. Gilroy e com Shirley McLaine no papel de Sophie. A produção recebeu os prêmios de melhor atriz (McLaine) e roteiro no Festival de Berlim. É homônima do livro (no original em inglês): Desperate Characters, ou Personagens Desesperados, em referência a Henry David Thoreau (1817–1962), que escreveu sobre "a calada desesperação da vida". Talvez a frase que melhor define o romance de Fox.

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Serviço: Desesperados, de Paula Fox (Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 192 págs., R$ 35,50).