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Alguns diretores parecem fazer filmes apenas para provocar. Era o caso do californiano Gregg Araki, conhecido por uma série de trabalhos que misturavam adolescentes alienados, drogas, rock, sexo e todo o tipo de perversão. "Era" porque, surpreendentemente, Araki amadureceu e cometeu uma das obras mais inquietantes dos últimos tempos: Mistérios da Carne, longa lançado em DVD no Brasil após ser exibido apenas na Mostra de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio.

Não que o radicalismo de Araki (presente em títulos como Estrada para Lugar Nenhum, Splendor – Um Amor em Duas Vidas e Geração Maldita) tenha ido para o espaço. A diferença é que, desta vez, o cineasta faz uso da ousadia para contar uma história consistente o suficiente para ficar por muito tempo na cabeça do espectador. O tema, apesar de recorrente em produções recentes, não poderia ser mais espinhoso – a pedofilia.

Em Mistérios da Carne, o foco se volta para as conseqüências do abuso infantil. Os personagens principais são os próprios abusados, que tentam entender como esse tipo de experiência definiu para sempre suas personalidades e trajetórias. Mas não se trata, nem de longe, de um filme realista (e, muito menos, maniqueísta). Travestida de suspense, inclusive com referências à ficção científica, a trama possui uma atmosfera de sonho, embalada por um trilha sonora etérea e minimalista – a cargo de Harold Budd (antigo colaborador do músico experimental Brian Eno) e Robin Guthrie (ex-integrante da banda Cocteau Twins).

Brian Lackey (Brady Corbert) é um jovem nerd que acredita ter sido abduzido por alienígenas na infância. Aos 8 anos, "apagou" subitamente e acordou com o nariz sangrando. Nunca mais foi o mesmo. Não consegue se relacionar direito com os outros, tem medo do escuro, urina na cama e costuma ser atormentado por pesadelos.

Paralelamente, o diretor apresenta o perfil de Neil McCormick (Joseph Gordon-Levitt, ex-ator- mirim da sitcom 3rd Rock from The Sun). Filho de mãe solteira e alcoólatra (Elizabeth Shue, de Despedida em Las Vegas, perfeita no papel de caipira americana), gay e revoltado com o mundo, o rapaz se prostitui para faturar uns trocados. Entre um programa e outro, Neil lembra do único homem que, segundo ele, realmente lhe tratou de forma especial: o treinador Heicher (Bill Sage), um pedófilo que dirigia o time de beisebol infantil de seu antigo colégio.

Moradores da mesma cidade minúscula do Kansas, Brian e Neil levam vidas distintas (mas igualmente confusas) até que o primeiro resolve investigar a origem de seus problemas. Acaba percebendo o quanto a hipótese da abdução é furada e, numa tentativa de ser "normal", aproxima-se de um colega da faculdade, Eric (Jeffrey Licon). Acontece que o novo amigo é unha e carne com Neil – não por acaso, presença constante e misteriosa nos sonhos de Brian.

Uma das grandes cartadas de Araki é não esconder, desde o início da história, que os dois protagonistas passaram pelo mesmo trauma de infância (ainda que Neil o encare como algo consentido de sua parte). A surpresa está no tratamento do assunto, desenvolvido a partir do imaginário da dupla.

Em nenhum momento o abuso é definido como a principal causa do sofrimento dos rapazes, tampouco o fato de ambos terem pais ausentes. Aqui, o viés psicanalítico dá lugar à interiorização dos personagens e à investigação de seu maior desejo: desaparecer. Um sentimento que, definitivamente, independe de um histórico de violência sexual. Eis a universalidade de Mistérios da Carne, muito mais do que um filme sobre pedofilia. GGGG

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