Romance
A Infância de Jesus
J. M. Coetzee. Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 304 págs., R$ 44.
Um adulto em torno de 40 anos, Simón, e uma criança de cinco, David, acabam de chegar em um lugar chamado Novilla, onde se fala espanhol. Não há informações precisas de onde vieram e nem se sabe exatamente quem são, exceto que o adulto é o responsável pelo menino, de quem pretende encontrar a mãe, que parece ter desaparecido em algo que seria um naufrágio. As informações corretas estavam numa carta que não existe mais. Sabe-se por indicações difusas que não podem mais voltar para o lugar de onde vieram, sobre o qual nada se conhece. Em alguns momentos, o leitor com imaginação, ou apenas mais ansioso por sentido, pode suspeitar que eles morreram, e estamos lendo o que acontece depois da morte, embora nada disso esteja expresso no texto.
Em Novilla, Simón encontra uma organização que lembra algum Estado com uma frágil estrutura socialista. Entrevemos sinais de uma administração burocrática que distribui residências apartamentos em blocos estatais , e que em alguns casos fornece alimentação, transporte e empregos, e até mesmo bordéis, para um eventual "alívio" masculino. A percepção da estranheza, ou do desconforto de tudo que se relaciona a sexo, é recorrente no texto, ainda que ele seja tratado com naturalidade ou talvez justo por isso. A burocracia revela-se descuidada, levando Simón de um lado a outro em busca da solução de seus problemas, mas, ao contrário do que poderia ser coerente com as dificuldades, quem sabe geradoras de tensão, não há constrangimento policial. As pessoas são quase sempre gentis, atentas às necessidades alheias, agindo sob uma cordialidade que, entretanto, é também burocrática, em cenas mais irreais que falsas. Aqui e ali o leitor poderá ser levado a concluir que se trata do relato de um sonho, de que as pessoas, as ações e as motivações descritas fazem parte do que se define como "lógica onírica".
Sobre este pano de fundo fugidio, numa geografia que jamais entrega suas coordenadas, movem-se Simón (alguém cuja cabeça funciona com um certo senso comum, vivendo reações que em muitos pontos seriam semelhantes às nossas, e cujo olhar e sentimentos acompanhamos durante todo o relato) e o menino David. O fio narrativo é, num primeiro momento, a busca da mãe de David, ou de alguém que ambos "sentirão" que é a sua mãe. Encontram essa mulher na figura de Inês, que, ainda relutante, abandona seus dois irmãos e o conforto de "La Residência", uma espécie de hotel confortável onde não se permitem crianças, para cuidar do "filho", tornando-se em pouco tempo uma mãe agressivamente superprotetora. Daí em diante, a educação do menino será o centro de preocupações de Simón, que volta a viver sozinho mas não perde o laço com o seu passado imediato. Trabalha como estivador no cais do porto, e troca com seus colegas densas observações filosóficas, em cenas que às vezes lembram inverossímeis diálogos de Platão, sempre eivados de um toque de esquisita ingenuidade argumentativa.
O mesmo contraste puros pensamentos, de cristalino idealismo, brotando de situações tensas, desagradáveis, ou mesmo abjetas (desentupindo uma privada, por exemplo) repete-se em vários momentos da narrativa, unindo especulações a um tempo simples e metafísicas sobre a vida, o mundo, o sexo ou a educação das crianças, com instantes absurdos e deslocados que se recusam à empatia. A Infância de Jesus talvez seja a mais radical narrativa sobre o estranhamento existencial da literatura contemporânea. Se um dos temas fundamentais da cultura da modernidade é a percepção de que somos todos feitos de substância "estrangeira", Coetzee leva a representação deste sentimento a limites extremos.
Não é fácil encontrar a filiação narrativa deste romance, a breve operação mental de todo leitor quando, já nas primeiras páginas, decide com alguma nitidez o que afinal está lendo um policial, um drama, uma fantasia, uma comédia, um livro de aventuras, uma alegoria moral, etc. , o que cria um eixo mais ou menos seguro de referências. Aqui, o narrador, ao mesmo tempo que nos atrai irresistivelmente pela hipnótica aventura de Simón, em nenhum momento deixa uma escada para o nosso conforto interpretativo. E tanto maior o estranhamento quanto mais nos identificamos com o silencioso desespero do personagem central, cujo natural "bom senso" estará sempre próximo da cabeça contemporânea do leitor. O segredo do livro está na âncora da percepção de Simón. Mantemos com ele um crescente contato emocional e partilhamos de sua luta em salvar David (um menino mimado, birrento, mergulhado em fantasias e cada vez mais incapaz de vida social). Nada em torno, entretanto, favorece essa luta. O próprio título resta enigmático: por que "Jesus"?
Interpretar este belo romance com a etiqueta de narrativa onírica seja ao modo de Kafka, que pressupõe simbolicamente uma vítima de uma estrutura social opressora à qual não temos acesso, seja ao modo psicanalítico, ou mesmo francamente surrealista, com o inconsciente deixado à solta é insuficiente para dar conta de sua raiz literária. Até certo ponto, A Infância de Jesus prossegue uma estrutura romanesca marcante na obra de Coetzee, como em Vida e Época de Michael K (ou mesmo em Desonra, para citar suas duas obras-primas), que lembra o clássico romance de "peregrinação", alguém que vai pelo mundo em busca de seu sentido. Outras referências clássicas se deixam entrever David, por exemplo, aprende a ler com um exemplar de Dom Quixote, e o embate feroz entre realidade e fantasia, sob o olhar de Simón, é um aspecto central do livro. E percebe-se uma filiação ainda mais longínqua: como nos romances de aventuras do início da era cristã (que mais tarde vão se transformar no romance de cavalaria medieval), personagens de origem misteriosa se encontram ao acaso em espaços abstratos, em um mundo estrangeiro e inescrutável. Naquele distante embrião da narrativa moderna, que Coetzee recria em seu romance, o homem está sempre à mercê de forças irracionais, num ambiente de determinação histórica inacessível.
A novidade de A Infância de Jesus, no conjunto de sua obra, está no fato de que, agora, ele subtrai por completo o pano de fundo de uma realidade social verdadeiramente partilhada pelos outros. Trata-se de um universo mental que não conta com nenhum território estável de contato a servir de referência no mundo concreto, nada que nos coloque de alguma forma, ainda que remota, no mesmo palco de valores e sentimentos a viagem de Simón é um mergulho radical no estranhamento. O que, transformado em literatura, acaba por se revelar uma das formas sutis do realismo reflexivo contemporâneo.
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