Não é fácil lidar com sentimentos sem transformá-los em pesadas placas de prensa e reduzi-los à máscara lamentável dos clichês. Sentimentos têm, quase sempre, uma aparência fácil: brotam espontaneamente, às golfadas, e escorrem molhados dos olhos. Difícil é enfrentá-los a seco. Mais difícil ainda, observá-los como travas que, em vez de expressar, bloqueiam a experiência.
Tal me parece ser o projeto do poeta Eucanaã Ferraz em Sentimental (Companhia das Letras). Está em um poema como "Romântica": preferimos tomar a vida como um filme. "Quantos de nós quereriam viver não a vida/ mas o filme, quando a vida não é vida/ e não se morre na morte..." ele constata. Quantos de nós preferimos "viver sem viver": sob as ordens de um destino previamente escrito (script), entre bandos "que matam sem matar", entre "bravos que no fim se vingam". Uma vida sem vida.
Preferimos, sim, os sentimentos fáceis. Aqueles que em vez de libertar, funcionam como travas, que seguram o que preferimos não sentir. Sentimentos prontos: tão mais fáceis. Em outro poema, "Les romanciers étrangers", uma mulher implora por um beijo, mas o homem o nega. "Firme e frio, disse que não". Ela se pergunta: "Mas como ele conseguia/ ser assim, intransponível?" Aos seus olhos, o homem é uma pedra. Só no fim, "ela entende/ que tudo foi bem pior:/ porque a pedra não era ele,/ porque a pedra era ela mesma". Apesar das lágrimas, pedra. "Sim, ela era a pedra dele/ em que ele a transformara". Sentimentos nem sempre estão onde julgamos. Uma lágrima o poeta sugere pode ser insensível. Um "não", guardar muito mais calor.
Não devemos nos enganar com as impressões mecânicas. Está no título de outro poema: "A beleza é uma ferida que nos atinge". Nele, uma aranha se desloca de um poema de Ferreira Gullar para um poema de Alberto Martins. "Não posso dizer que veio em carne/ e osso, não ouso dizer que veio/ em alma e corpo". A beleza pode estar numa aranha que anda, sem que possamos entender seus motivos. "Sem que eu, a testemunha,/ saiba, digamos, interpretá-la". A aranha (nojenta) expressa a dança dos sentimentos: eles se movem no escuro, dão saltos imprevisíveis e escapam a toda compreensão. A aranha ameaça e fere: ela nos atinge. Permanecemos em silêncio, com a beleza de sua dança, ainda que repulsiva. Vá se entender o que sentimos.
Eucanaã nos fala da teimosia como uma estratégia para o sentir. "Olhos fechados para a evidência,/ quis entender aquilo que se recusava/ a seu alcance". A sensatez (banal) sugere que aceitemos os desejos imediatos e as ilusões automáticas. A poesia se esquiva dessas facilidades. "O amigo, em Lisboa, pergunta o que quero de Lisboa:/ nada, respondo, não quero senão o que não vem nos postais". Os postais enquadram a beleza. O poeta, porém, pensa em objetos mais densos, mas "como trazê-los"? Ao amigo (Alberto Martins?) ele, enfim, responde: "não vale a pena trazer nada, que daí só trazemos, sem dar conta/ o que nos parte/ o que nos corta". Um postal é uma faca, que mata o que se viveu.
Continuo a avançar através dos versos desafiadores de Eucanaã. Uma beleza que trepida e que me empurra para fora de mim. "Vagueio desacordado de tudo/ e sobretudo em desacordo comigo", ele escreve. Na Vista Chinesa, diante do cenário magnífico, o poeta desconfia outra vez do que sente. "Achei que/ em meu coração a tristeza era mesquinha". Tristeza de amor, que o cenário (o real) devora, empurrando para o lugar dolorido das ilusões. Escreve: "Era uma tarde chinesa, tarde de mim sem você,/ quando vi que nós dois juntos não valíamos".
Mas não é só poeta que está em descompasso com o que sente. Também o leitor eu, pelo menos, me sinto assim percebe-se alijado do miolo dos poemas, como alguém que os rondasse, sem penetrá-los. Talvez essa seja a marca da poesia: a leitura como ronda. Talvez, a respeito da poesia, eu possa repetir o que Eucanaã escreve a respeito dos leões: "amar um leão é não poder amá-lo". É aceitar o gozo da distância. Em "El labirinto de la soledad", ele fala de Yuri Gagarin que, em 1961, ao subir pela primeira vez ao espaço, exclamou: "A Terra é azul". Descreve um Yuri que, de volta à Terra, tornou-se um homem sensível, que "chorava/ nos museus, teatros, diante da televisão". Alguns decretaram que ele enlouquecera, "mas sua mulher assegurava/ que ele apenas voltara sentimental". Voltou à Terra não místico, ou religioso, mas tomado por uma "ternura devastadora". Depois de ver a cor verdadeira da Terra, o que mais poderia sentir?
A viagem através dos sentimentos, porém, esbarra (termina) em sua própria casca. Como decifrá-los? Como interpretá-los? Não será o mais difícil apenas aceitá-los? Depois de declarar que "a Terra é azul", Yuri passa a dizer tautologias como "a leveza é leve". Só um poeta (Eucanaã) para encontrar na repetição a brecha para a beleza. Ele escreve: "Desde o início,/ quiseram caçá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo/ e não nos contou como é a morte".
Rememora, enfim, seu vínculo amoroso com a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, falecida em 2004, que conheceu através de outro poeta, Gastão Cruz. Novo deslocamento: a poesia se transporta para a voz. "A hora como que se curvava/ quando Sophia falava, e então/ todas as palavras eram números mágicos". No poema seguinte, em que dialoga com o poeta Antonio Cicero, aponta um paradoxo: "Repare, Cicero, que os copos se tornam/ mais leves quando cheios de vinho". O vinho se apresenta como metáfora para o poema. Termina: "Repare que o mesmo se dá conosco: o peso/ faz-se leve em nós se um verso nos acontece". Algo nos é arrancado. O poema não está onde deveria estar e por isso o nome, "poeta", parece uma falsificação.
Não, a poesia não se origina dos sentimentos automáticos. É mais uma lâmina (Cabral) que os retalha e expõe. O poema arranca algo do poeta, em vez de lhe dar. Escreve Eucanaã: "é o que digo;/ se sou, sou-o/ incompletamente". Talvez se possa pensar na poesia como um vão. Uma rachadura. Algo que segura os sentimentos fáceis para que outros, mais dolorosos e menos sentimentais, ocupem seu lugar.