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Aos 9 anos, inspirada por uma ida ao teatro, Clarice Lispector escreveu uma peça em três atos que chamou de Pobre Menina Rica. Desde então, não parou mais de escrever. Ainda menina, suas inúmeras historietas foram recusadas pelo editor do espaço infantil do Diário Pernambucano. Talvez porque, ao contrário das outras crianças, o que ela escrevia não tinha "pé nem cabeça", no sentido careta do que se entende por uma história.

Suas histórias "sem história" ganharam credibilidade com a chegada da fase adulta. Clarice gostava de dizer que não era uma escritora, e sim uma "sentidora". Por isso, sua obra seguiu a contra-corrente das tendências literárias. Aos 23 anos, causou um "choque", como afirmou o crítico Antonio Candido em uma resenha, ao estrear com Perto do Coração Selvagem, um romance psicológico em meio a um cenário dominado pela narrativa regionalista, relacionada às questões sociais. Os contos e romances da escritora pareciam ser o contrário do que se propunha como caminho para a literatura brasileira: eram anti-realistas por natureza, preocupados com a investigação das motivações internas do indivíduo.

Mas, uma novela escrita no mesmo ano da morte de Clarice Lispector, há exatos 30 anos, surpreende pela narrativa alicerçada no concreto, na realidade social. A Hora da Estrela, de 1977, ganhou popularidade e, embora seja o último trabalho da autora, tornou-se uma espécie de porta de entrada para o restante de sua obra, por ser mais digerível a principiantes.

Uma versão comemorativa do livro acaba de ser publicada pela Editora Rocco (120 págs., R$ 45), acompanhada pela narração do texto gravada em dois CDs pelo ator Pedro Paulo Rangel. A cantora Maria Bethânia, que desde o início de sua carreira costuma ler trechos de livros de Clarice em seus shows, dá voz a dedicatória do autor, o narrador Rodrigo S. M., espécie de alter-ego da autora.

Sob o arbítrio de Clarice, o personagem-narrador justifica sua história: "Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura – fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir". Na verdade, o excesso de simplicidade da personagem Macabéa, que tem sua curta trajetória de vida narrada sucintamente por Rodrigo, revela ainda mais a complexidade da escrita de Clarice, que manteve a mesma densidade de seus textos anteriores ao falar de uma nordestina simplória no Rio de Janeiro, "uma cidade toda feita contra ela", datilógrafa semi-analfabeta prestes a ser demitida por incompetência. Macabéa, aliás, era incompetente para a vida. Como escreveu Clarice, "ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando".

Filme

Esta personagem tão ordinária e, talvez por isso mesmo, tão complexa, ficou marcada no imaginário brasileiro pela figura franzina da atriz nordestina Marcélia Cartaxo, vencedora do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1986 por sua interpretação de Macabéa, no filme homônimo ao livro da diretora Suzana Amaral.

Investigar a mediocridade da vida de Macabéa para denunciar a realidade sofrida de moça pobre nordestina não interessaria a Clarice Lispector se ela não pudesse perscrutar também a repercussão desta realidade no íntimo da personagem. Quando a vidente diz a ela que será feliz com um estrangeiro loiro e rico, dono de um automóvel Mercedes-Benz, a moça descobre subitamente a esperança. Logo ela, que nunca esperava nada da vida. Mas, ao deixar a casa da cartomante, ironicamente, é atropelada por um carro da mesma marca, e morre.

Ao mesmo tempo perplexo e entediado pela trágica mediocridade da vida da moça, Rodrigo S. M. interrompe com freqüência sua história com reflexões em que relaciona o que conta à sua própria vida. Um exemplo é o desabafo que coloca entre parênteses, em meio a um parágrafo: "Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim. Não me responsabilizo pelo que agora escrevo".

No entanto, ele tranca-se em casa, veste-se de mendigo e come frugalmente para identificar-se e, assim, escrever sobre alma tão simplória. Clarice Lispector era, ela própria, nordestina naturalizada. Nascida na Ucrânia, em 1920, foi parar em Maceió com a família, em 1922, fugindo da perseguição anti-semita e da revolução bolchevique. Passou a infância em Recife e, aos 12 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. A identificação de Rodrigo com Macabéa, portanto, parece ser a sua própria. A personagem, tão pobre e feia, não desmonta de seus ombros, como escreve no livro (leia trecho). Mas, muito mais do que a preocupação com a problemática social exemplificada por Macabéa, Clarice condói-se pela existência inconsciente e v㠖 a famosa "condição humana", a que ela se debruçou em toda toda a sua escrita. Condição que, aliás, é dela e nossa também.

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