Trinta e cinco anos atrás, o pesquisador francês Philippe Lejeune, hoje com 69 anos, saiu por aí dizendo que, para um livro ser uma autobiografia, bastava o escritor dizer que era e o leitor aceitar o que ele dizia. Era o "pacto autobiográfico".
É mais ou menos como fazer um acordo no fio do bigode. O escritor garante que relata os fatos do modo como eles aconteceram ou do modo como ele lembra que aconteceram, daí já começa a complicar e o leitor embarca ou não.
Acontece que os livros, assim como a vida, não são facilmente categorizáveis. Não bastam a ficção e a não-ficção. Ou talvez bastem. Depois de ler dezenas de títulos em que autores narram passagens de suas vidas, uma coisa fica clara: tudo depende de quem escreve e de quem lê.
Irlandês radicado nos EUA, Frank McCourt não admite nuances. Um dos grandes memorialistas vivos, os únicos três livros que fez na vida são relatos autobiográficos dois deles lançados no Brasil, As Cinzas de Ângela e Ei, Professor.
"Não há ficção nos meus livros", disse McCourt em uma de suas entrevistas, assumindo um tom quase maniqueísta. Na verdade, qualquer escritor que pretende narrar experiências pessoais, usa ferramentas da ficção para fazê-lo (e a recíproca também existe).
Na apresentação de Memórias de uma Menina Católica, lá em 1957, Mary McCarthy (1912 1989) transitou sobre a linha mal ajambrada que separa fato e ficção na literatura. "As conversas, tal como apresentadas, são em grande parte imaginárias. As aspas indicam que houve uma conversa com aquele sentido geral, mas não garanto a exatidão das palavras empregadas nem a ordem exata das intervenções. Há ainda outros casos sobre os quais nem eu mesma sei muito bem se estou ou não inventando alguma coisa", escreveu.
Quando se dispôs a analisar as memórias de McCarthy, James Olney, estudioso graúdo no meio acadêmico americano, afirmou que a expressão "eu lembro" é um suporte dos mais poderosos possíveis para sustentar a crença no que está sendo dito. Se o autor usasse "Eu acho que lembro" ou "Eu ouvi dizer que", o impacto seria muito menor ou mesmo inexistente.
"Eu lembro carrega uma certeza de continuidade e a autenticidade de um evento cujo status não pode ser duvidado, pois reside inalterado no espaço da memória", afirmou Olney no tijolo Memory & Narrative: The Weave of Life-Writing (1998).
Ao escrever as memórias da época em que viveu na França, Ernest Hemingway (1899 1961) admitiu o conflito entre ficção e fato em um modo que o aproxima de Mary McCarthy. No clássico Paris É uma Festa, editado três anos depois de sua morte, ele diz que "Se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção. Seja como for, ficção ou não, há sempre a possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que foi escrito como matéria de fato".
Hemingway, Olney, McCarthy, McCourt e Lejeune são cinco possibilidades em uma biblioteca descomunal de autores e obras ligados aos relatos autobiográficos (na falta de um termo que englobe memórias, diários, confissões e autobiografias).
A partir do que esse quinteto disse e escreveu, dá para imaginar a confusão causada por certos escritores jovens à beira do século 21. E o mais insolente deles talvez seja Dave Eggers, autor de Uma Comovente Obra de Espantoso Talento. Aos 29 anos, ele conseguiu estrear na literatura com um livro de memórias de mais de 500 páginas 50 delas usadas para sapatear sobre idéias definidoras do gênero.
Para começo de conversa (e fim de texto), Eggers era um autor jovem e desconhecido enquanto o pacto autobiográfico na forma descrita por Lejeune exigia exatamente o contrário.
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