A linguagem dos quadrinhos que costuma ser erroneamente confundida com um gênero literário, como a literatura policial e a literatura fantástica jamais havia atingido a maturidade narrativa que assombra o leitor de Asterios Polyp, a primeira graphic novel autoral de David Mazzucchelli que chega ao Brasil após dois anos.
No livro, o traço versátil do artista americano mais conhecido por seu trabalho com super-heróis em Demolidor: A Queda de Murdock e Batman: Ano 1 serve bem a camadas mais profundas de leituras da história do arquiteto Asterios Polyp, um homem de cinquenta anos que perde tudo o que tem quando um raio atinge o prédio onde mora. Reconhecido exclusivamente por seus trabalhos teóricos, o arrogante e cético professor de ascendência grega e italiana parte para o interior do país até onde seu dinheiro o consegue levar. Acaba por chegar à cidade fictícia de Apogee, onde consegue um emprego e um abrigo temporário com a família de um mecânico de automóveis. Enquanto deixa-se levar ao sabor do acaso, como no acontecimento que o jogou na estrada, Asterios coloca sua vida em perspectiva, relembrando principalmente de seu relacionamento com Hana Sonnenschein, uma professora oriental que passou sua vida ofuscada pela prepotência do arquiteto.
Cores
Narrada por Ignazio, o irmão gêmeo natimorto de Asterios, a história alterna entre padrões de cores para demarcar o tempo: roxo e azul representam o passado, e roxo e amarelo preenchem o tempo presente. Permeando o complexo perfil do protagonista, há discussões pertinentes sobre arte, estética, ontologia, amor, família e metafísica que não comprometem em nada a fluidez da narrativa. Pelo contrário. A personalidade do herói, em contraposição à de seu irmão gêmeo, é enriquecida pelas visões do autor sobre questões que poderiam ser profundas demais para uma simples narrativa imagética.
Mas é aqui que a genialidade de Mazzucchelli contorna a situação mais uma vez. O autor dá personalidade a cada personagem por meio do texto, em seu conteúdo e representação gráfica. Uma tipografia e um balão de diálogo diferente para cada um que aparece na história conferem uma individualidade ímpar mesmo a figurantes que não duram mais que duas páginas. O resultado de todos esses elementos juntos é uma graphic novel como poucas, capaz de iluminar a humanidade diluída em clichês dos personagens de HQs contemporâneas e de resgatar, de certa forma, a carreira do próprio Mazzucchelli, há muito tempo obscurecido em sua graphic novel sobre Matthew Murdock, o alter-ego do herói Demolidor, o protagonista, assim como Asterios, perde sua casa, seu trabalho e tudo mais o que tem.
Um exemplo da expressão gráfica de Mazzucchelli em Asterios Polyp é o capítulo que mostra como o arquiteto conhece sua amada Hana. Imersos no ambiente protoacadêmico das festas de faculdade, cada membro do corpo docente é desenhado em contornos diferentes. Asterios, um homem das formas, rígido e cético em suas opiniões, é composto por sólidos azuis e transparentes, como cilindros, prismas e cubos. Já Hana, uma personalidade mais livre e inquieta, é retratada por rabiscos vermelhos e densos. A paixão que brota entre os dois aproxima os mundos opostos e ambos passam a ser retratados de ambas as formas: sólidos azuis transparentes preenchidos por uma densa hachura. Qualquer texto escrito seria dispensável e redundante ante soluções imagéticas como essa.
Figuras recorrentes
Quem conhecer o trabalho de Mazzucchelli vai identificar diversas simbologias e personagens de sua carreira que aparecem como figurantes em Asterios Polyp como Steven Drizzle e seu fascínio (compartilhado pelo autor) por asteroides. Quem, porventura, não souber nada sobre o quadrinista nem sobre filosofia, arte ou qualquer outro tema relacionado à graphic novel, vai se impressionar e se encantar com uma história contada com todas as letras e imagens.
Serviço
Asterios Polyp, de David Mazzucchelli. Tradução de David Pellizzari. Quadrinhos na Cia., 344 págs., R$ 63.
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