Um bigode postiço teima em não acontecer. Mesmo com a precisão das mãos da mãe, o filho, sentado, se agita e treme de alegria , querendo contar suas duas vidas em poucos minutos. É que Charles Britto tem um compromisso. Logo mais, na noite daquela quarta-feira, estaria no palco do Empório São Francisco tocando blues e rock, rindo, se divertindo. Vivendo de novo.
O bigode feito a lápis era o complemento da "fantasia" daquele Britto, prestes a virar Chaplin para comemorar seu aniversário: naquele dia, já estava de camisa branca engomada, calças pretas folgadas e sapatos negros lustrosos. No rosto, alegria e uma camada de maquiagem, branca e pastosa, que chegava perto dos cabelos longos e esparramados sinal de rebeldia, juventude. "Venci mais uma vez", diz Charles, em seus tempos modernos.
Porque tudo era diferente há nove anos. Voltando de um show com sua ex-banda, Charles madrugou. Bebeu. Beberam todos os quatro. Teve a chance de ficar em casa depois da noitada, mas quis sair de novo aos 20 anos, ir para Santa Felicidade com amigos às 6 horas da manhã parece uma boa ideia. Foi. O carro, veloz, encontrou um ônibus, capotou. Tudo parou. Ironia da vida, Charles, sentado no banco de trás, era o único que usava cinto de segurança.
Traumatismo craniano, lesões nos dois hemisférios do cérebro e uma conversa sobre doação de órgãos foi o que Graça Brito, mãe desesperada, ouviu quando chegou ao hospital Cajuru. Os médicos também diziam que o cérebro estava encharcado de sangue. Então era questão de horas. Só algum tempo para que os coágulos chegassem ao coração. Charles teria uma parada cardíaca: fim. Não.
"Meu filho, não tenho religião, tenho fé", brada a baiana. As veias saltam na testa, sua energia é quase concreta. Já no dia seguinte, começou a segunda vida de Charles Britto.
Mas primeiro veio o laudo, impiedoso: "incapaz definitivo. É equivalente a paralisia. Necessitará de cuidados permanentes de enfermagem e fisioterapia. Compatível com invalidez para o trabalho remunerado". Que nada. Graça, escondida, colocava arnica diluída na sonda do filho "uma erva que na minha terra eles usam para trauma". Passados alguns vidros e dias, Charles começa a desinchar.
Graça desafiou laudos, médicos, enfermeiros. Hospitais inteiros. Ao ver que uma bactéria o atacava, resolveu mudar. Decidiu ir para o Sarah Kubitschek, em Brasília, para ouvir outras opiniões que, esperava ela, fossem diferentes de todas as outras. Depois de conseguir um médico que fizesse acupuntura em Charles às escondidas "era minha intuição", justifica , Graça passou um trote na secretária e conversou diretamente com o diretor-chefe do hospital, Aloisio Campos da Paz. Conseguiu uma avaliação, uma UTI aérea "meu filho, quem tem avião nesse país? A aeronáutica!" e lá foi Charles para a consulta. Ele estava há quase dois meses em coma e respirando por aparelhos. Pesava 45 quilos, definhava.
Um mês de exames, e outro diagnóstico conclusivo: "Vida vegetativa, Charles é tetraplégico completo".
A essa altura, as palavras gastrostomia, traqueostomia, espasticidade e sonda nasogástrica já estavam incorporados ao vocabulário da baiana dona de casa. Eram tão comuns que Graça resolveu estudar o que lia entender melhor o seu filho.
"Ia lá no computador da Rua 24 horas, que é grátis, pesquisar sobre plasticidade neural. Achei um livro sobre neuróbica, tinha 368 páginas." Graça emprestava os livros e, sem poder comprá-los, tirava xerox. Depois os devolvia. Eram passados quatro meses do acidente e Charles já estava em casa, acompanhado do pai, durante o dia, e das peripécias da mãe, à noite. Graça estimulava os sentidos de Charles colocando gravações em seu ouvido, oferecendo cheiros a seu nariz e massinhas de modelar a suas mãos. Até que, certa noite, ouviu um "amooooocê". Logo depois, Charles levantava a mão, ainda rija. "Amoooooocê", repetiu. "Aí foi uma loucura".
Charles e Graça começavam a se divertir. Faziam fisioterapia um com o corpo do outro. Improvisando, Graça prendia o braço do filho, que teimava em não mudar de posição, em uma cama de segunda mão doada pelo Hospital do Exército.
Depois de outras reavaliações em Brasília e no Rio de Janeiro, sempre surpreendentes, um método de comunicação foi inventado. Existia um cartaz de papel cheio de letras. Charles apontava uma por uma, dizia o que queria e saia aos poucos de seu escafandro.
Desafiou mais médicos, que disseram que Charles chegara ao limite. Mas não. "Somos grandes, ele pode, ele consegue, ele é danado", brinca Graça.
Hoje Charles, ainda em processo de recuperação, já apronta das suas de novo. Anda, toca, cai com a cara no chão, porque teima em andar sozinho. Diz que só tem 8 anos e por "isso é assim". Por isso agora imita aquele outro Charles de anos atrás: fecha as mãos, entorta a boca. Mas sorri. "O bom-humor pode predominar em tudo", diz.
Com os amigos Hermann (guitarra e voz), Leandro (voz e gaita), Kako (baixo e voz) e André (voz e bateria), Charles ("azucrinação"), compôs oito músicas que estão no disco Um Dubão, de Charles & Seus Alimalles, sua nova banda. (www.myspace.com/charlesbritto).
"Ele vinha todo dia com uma música nova. Tivemos que limar algumas", diz um dos amigos. Rindo, no dia de seu aniversário e antes de reestrear nos palcos, Charles não pensa nos cinco meses em que esteve em coma. Ele poderia até estar "ausente da vida", mas nunca esteve "longe da música."
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