Partir em um barco para integrar as grandes navegações portuguesas na virada do século 16 era uma aventura sem precedentes. Os homens que descobriram o caminho para as Índias e acabaram topando no meio do caminho com um novo continente tinham de enfrentar dificuldades de todo tipo. Medo de naufrágio, comida racionada e risco de doenças eram talvez os mais graves. O que hoje, 500 anos depois, é mais difícil de imaginar, eram as picuinhas familiares que nossos heróis enfrentavam. E, pelo jeito, também nesse aspecto a vida não era fácil para eles.
O Auto da Índia, que estréia hoje em Curitiba em uma montagem do grupo Satyros, é uma peça que conta justamente o lado familiar e cômico da vida dos heróis descobridores. Escrita em 1509 por Gil Vicente, o maior autor português na era pré-Camões, a pequena farsa conta a história de um homem que sai de Portugal para uma viagem de três anos às Índias. E mostra o quanto a sua mulher se diverte com outros homens enquanto ele está fora.
Gil Vicente, considerado um gênio do teatro, escrevia suas peças para ser encenadas na corte. Era um favorito da rainha, dona Leonor. Antes de O Auto da Índia, fazia principalmente textos religiosos. Essa é sua primeira farsa. Uma comédia leve, de costumes, que mostra situações engraçadas ao mesmo tempo em que faz uma crítica à sociedade. No caso do texto a ser encenado pelos Satyros, uma crítica à infidelidade feminina. Aliás, essa também é a primeira peça em que Gil Vicente coloca mulheres em cena.
A montagem que estréia hoje é feita por um grupo de ex-alunos da companhia, que enfrentam agora o desafio de se tornar profissionais encenando um clássico da dramaturgia de nossa língua. "Eles tomaram um susto ao ver o original, em português arcaico", conta Silvanah Santos, diretora da peça. Depois de fazer com que os atores compreendessem o texto, ela começou a desenvolver uma adaptação para o português moderno, tentando sempre manter algumas características do original. "É necessário trabalhar com uma adaptação para melhorar a comunicação com o público", comenta.
Para quem gosta de teatro, a peça também serve como uma chance de ver como o autor, ainda preso a várias convenções estabelecidas pelos seus antecessores medievais, faz para superar os obstáculos de cena. Ele não tinha ainda a técnica de escrever em atos, por exemplo o que só seria incorporado aos textos portugueses mais tarde. Para fazer as passagens de tempo, ele tinha que achar outros artifícios. Também tinha que se desdobrar para fazer com que todas as cenas se passassem em um único ambiente, conforme exigiam as circunstâncias. Mas por ter superado esses e outros problemas, Gil Vicente continua sendo encenado 500 anos depois de seu tempo.
Serviço: O Auto da Índia. Espaço dos Satyros (R. Desembargador Westphalen, 1.364), (41) 3323-3399. De quarta a sábado, às 21 horas, e domingo, às 20 horas. Ingressos a R$ 10 e R$ 5 (meia) às quartas e quintas, os bilhetes são trocados por um quilo de alimento não-perecível (exceto sal).
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