A cineasta argentina Lucrecia Martel, de 46 anos, precisou de apenas três longas-metragens para se estabelecer como uma referência no cinema latino-americano e mundial. A diretora, que está em Curitiba, ministrando uma oficina de roteiro dentro do projeto Ficção Viva II, conversou, por e-mail, com a reportagem da Gazeta do Povo sobre aspectos presentes em sua obra, composta por vários curtas e pelos longas O Pântano (2001), A Menina Santa (2004) e A Mulher sem Cabeça (2008).
Quando O Pântano foi lançado, no início da década passada, o cinema intimista, marcado ao mesmo tempo pela sutileza dos detalhes, pelo inusitado que verte do trivial nas suas tramas e pela potência das imagens, sempre apoiadas em um brilhante trabalho de desenho de som, causou furor entre os críticos e a colocou imediatamente na lista dos criadores a serem acompanhados de perto. No filme, duas mulheres, Mecha (Graciela Borges) e Tali (Mercedes Morán), primas, vão com seus respectivos maridos e filhos para um sítio em uma região pantanosa no norte da Argentina.
Sob um sol de Satã, o confronto entre os personagens, que compartilham o mesmo espaço físico, e veem conflitos borbulharem, é um retrato familiar marcado pela tensão, mas também pela contenção outra marca do cinema de Lucrecia, no qual o tema família sempre parece estar de alguma forma presente.
Sobre essa recorrência, a diretora tem posições contudentes. Diz que, para ela, a família é a origem de todos os males.
"E digo sem ressentimiento, porque tenho uma família muito unida e amorosa. Talvez extremamente", afirma Lucrecia. "No entanto, a família nos torna mesquinhos com o amor e racistas, em um certo sentido, no que diz respeito a nosso sangue. Amamos até a injustiça e os crimes de nossos irmãos e parentes. A máfia não existiria sem a família. Na escola, nos diziam que a famíia era a célula da sociedade. Eu creio que seja a semente do mal. Se não houvesse família, não haveria crianças abandonadas e haveria menos corrupção."
Espaço
Natural da cidade de Salta, no norte da Argentina, Lucrecia procura conferir a toda sua obra um forte senso de geografia, de ambientação. Sobre isso, a diretora diz que o espaço físico é a dimensão que lhe dá mais sobre o que pensar. "Talvez por ser algo contínuo, como nosso corpo."
A diretora de A Menina Santa, rodado em Salta, diz, contudo, que dá até mais importância ao som do que à imagem na construção de seus filmes (leia entrevista nesta página), por acreditar que o que se ouve é capaz de tornar mais evidente o espaço, o ambiente onde a trama se passa, mais do que o que se vê. "E é muito mais barato [em termos de produção]", diz.
Lucrecia lembra que, em uma de suas viagens ao Brasil, em São Paulo, um rapaz sugeriu a ela, depois de um debate sobre seu trabalho, que ela lesse a obra do geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001). "Um tempo depois, em Madri, consegui um exemplar de A Natureza do Espaço, e o li. Desde então, quando alguém me pede a recomendação de um livro para estudar cinema, sempre indico Milton Santos."
Depois de fazer três filmes com roteiros originais de sua autoria, Lucrecia agora se prepara para rodar sua primeira adaptação, do romance Zama, do autor argentino Antonio di Benedetto, publicado em 1956, e cuja trama se inicia no fim do século 18, quando um emissário do governo espanhol se instala na região onde hoje seria Assunção, capital do Paraguai.
Sensualidade
Outro elemento que transborda nos filmes de Lucrecia Martel é a sensualidade, ainda que ela não assuma posição central, necessariamente. Ela diz acreditar que esse clima surge, inevitavelmente, quando se caminha no terreno da sensualidade. "O indefinido me parece próprio da natureza humana. Toda vez que se estabelecem instituições em torno do corpo, algo naufraga. Inclusive a família."
Para falar sobre o que seja, para ela, o desejo, algo fundamental ao seu cinema, Lucrecia, diz que gosta da ideia de "andar em terra firme como se fossem terrenos inundados". "Essa náusea, tomara, nos permitirá reconhecer a imposibilidade do definido. Duvidar da solidez me parece uma melhor maneira de avançar do que o tédio, a vulgaridade da certeza. O indefinido não cerra o pensamento, o obriga a permanecer aberto. Isso é o desejo."
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