Sting: sem dom para as rimas| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Reedição traz autos do processo contra Flaubert

O achado da reedição de Madame Bovary lançada pela Nova Alexandria – além da tradução, das notas e da apresentação de Fúlvia M. L. Moretto – é o processo sofrido por Gustave Flaubert, movido pelo Ministério Público da França.

Os autos renderam 57 páginas, somando os argumentos do advogado de acusação Ernest Pinard, a defesa feita por Marie-Antoine-Jules Sénard e a sentença do tribunal, publicada em 9 de fevereiro de 1857. Com a decisão a favor de Flaubert, Sénard se saiu como herói do episódio e o escritor acabou dedicando o romance a ele.

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Para ser fiel ao seu desejo, foi necessário que traísse as convenções sociais de seu tempo – e seu marido. Mesmo que Emma Bovary não inaugure a temática do adultério na literatura, preocupação recorrente durante todo o século 19, a forma como Flaubert a retratou serviu de base para diversos autores que se seguiram. Em uma galeria de personagens adúlteras, que incluiria Anna Kariênina, da obra homônima de Tolstói, Lady Chatterley, de O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, Luísa, de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, entre tantas outras (Capitu?), certamente Emma teria lugar de destaque.

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Só que não foi o adultério da mulher do médico Charles Bovary o principal crime de Flaubert: foi sua nova forma de narrar.

Como resume o pesquisador Thierry Laget, na contracapa da versão francesa de Madame Bovary, lançada pela Gallimard: "É a história de uma mulher mal casada, de seu marido medíocre, de seus amantes egoístas e vãos, dos seus sonhos, das suas quimeras, e de sua morte. É a história de uma província estreita, devota e burguesa. É, também, a história do romance francês. Nesse quadro, nada disso poderia ter chocado a sociedade do Segundo Império. Mas inexorável como uma tragédia, brilhante como um drama, mordaz como uma comédia, o livro possuía uma arma poderosa: o estilo."

Flaubert representa um momento de ruptura na literatura francesa. Enquanto Balzac se preocupou em traçar um panorama social do século 19 em sua Comédia Humana, Flaubert pretendia escrever um "livro sobre nada", um romance no qual o importante fosse mais a literatura em si do que a história a ser contada.

"Ele inventou uma forma nova de narrar. Não tanto do ponto de vista temático, porque a história de Emma Bovary é uma história banal: uma mulher casada com um médico de província decide cometer adultério. O que choca é o ponto de vista adotado. Flaubert usa uma técnica, que é a do discurso indireto livre, que faz com que se tenha a impressão de que é Emma que está narrando o que está acontecendo, mesmo sendo, na realidade, um narrador", explica o doutor em literatura e professor da UNB (Universidade de Brasília), Adalberto Müller.

Ideal romântico

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Flaubert construiu um quadro da situação da mulher no século 19, momento em que o casamento deveria ser a preocupação mais importante, ainda que dele pudesse decorrer a infelicidade da mulher. Partindo dessa questão, Emma é uma libertária: não abandonou seus desejos, ainda que isso lhe tenha custado a vida. Ao tomar arsênico, Bovary arrasta consigo todo o ideal romântico.

É a mesma busca de Emma que vai impulsionar o rol de personagens femininos que se seguiram a ela: Anna Kariênina coloca em segundo plano os valores familiares ao ir atrás de seu amante, na Rússia czarista, o que também acaba por levá-la à morte; enquanto Constance, a Lady Chatterley, se envolve com um empregado de sua casa com o consentimento do marido, em um dos romances mais eróticos da literatura universal.

"Todos os grandes autores modernos foram influenciados por Flaubert. Quer o mais fácil? Monsieur Joyce. Nenhuma frase é de graça. É um método de trabalho. Veja que não é uma simples importância dada à ‘forma’, mas a consciência de que a ‘forma’ é parte integrante significativa da obra", aponta Sandra Stroparo, da UFPR.

Como lembra o crítico Otto Maria Carpeaux, Flaubert é o "escritor dos escritores", e Emma Bovary está no início da consciência feminista. O impacto de Madame Bovary ultrapassa gerações e o comportamento da protagonista continua dividindo leitores: os que compreendem sua insatisfação com a vida de província e os que a acusam de fútil e leviana – e identificam Charles Bovary como o verdadeiro herói do romance.

Aceite a provocação de (re)ler Madame Bovary, em seu aniversário de 150 anos. E entregue-se ao bovarismo.

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