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“Quando nasci, meus pais já estavam cansados de todo verão ir para a praia. Ainda íamos, mas por um menor período. Eles me mandavam para a fazenda. Peguei os dois lados: mar e roça, a música caipira e a do recôncavo baiano.” Maria Bethânia, cantora | Imagens: Divulgação/Gravadora Biscoito Fino
“Quando nasci, meus pais já estavam cansados de todo verão ir para a praia. Ainda íamos, mas por um menor período. Eles me mandavam para a fazenda. Peguei os dois lados: mar e roça, a música caipira e a do recôncavo baiano.” Maria Bethânia, cantora| Foto: Imagens: Divulgação/Gravadora Biscoito Fino

Maria Bethânia está obsoleta. Foi ela quem o disse, diante de uma plateia de jornalistas reunidos na gafieira Estudantina, no Rio de Janeiro, para o lançamento de seus dois novos discos. A coletiva de imprensa como um todo, aliás, está obsoleta. Os repórteres inclusive. "O mundo passou", observa serena, com os cabelos grisalhos sempre soltos e rebeldes, toda de branco.

Diante dessa constatação, dita sem tristeza, a mais respeitada das cantoras brasileiras vivas reconhece o seu lugar num contexto de ven­­das de disco em queda; pirataria e downloads em alta. Quando mais se começa a pensar (com ou sem razão) que o CD é um formato ultrapassado, Bethânia tira do forno não um, mas dois. Tua sai pela Biscoito Fino, ao mesmo tempo em que lança Encantería por seu próprio selo, o Quitanda.

Bethânia repete a ousadia de 2006, ano em que se desdobrou em dois álbuns, Mar de Sophia e Pirata. "Eu gosto de cantar, então eu canto. A preocupação com a pirataria não é meu trabalho, não", explica, simples assim. Aparentemente. Por­­que o grau de autonomia que a in­­térprete conquistou, em mais de quatro décadas dedicadas à música, é um privilégio de poucos. Ou­­tra como ela, talvez só Marisa Monte e seus CDs Infinito Particular e Universo ao Meu Redor, feitos simultaneamente em 2006. Mas, com a produtividade de Bethânia – que ainda teve fôlego, entre os discos de 2006 e os novos, de gravar Dentro do Mar Tem Rio, além de CD e DVD com Omara Portuondo – só ela.

"A minha fome de cantar é grande. Nasci para isso. É meu ofício, vivo para ele. E ele não me trai, temos um casamento de acordo", contenta-se. Bethânia conquistou, ao criar o Quitanda, a autonomia de fazer o que quer, mas não tudo o que quer. São inúmeras as canções que compositores do país todo mandam para ela, sedentos de uma gravação na voz que os consagrará. A artista diz que ouve tudo, e sobra muito repertório. "Por mim, faria dez discos, mas é caro."

Seu contrato com a Biscoito Fi­­no lhe dá liberdade artística. "A Bis­­coito Fino é pela música, o artista mergulhado no seu elemento", diz ela. Seu mergulho, desta vez, se guiou pelo amor, o mote onipresente em Tua. O sentimento em si, mais do que o ser amado, é o personagem da maior parte das 11 canções. As sonoridades se embrenham ora pelo som regionalista de acento sertanejo, sustentados pelo violão de Jaime Alem, ora por arranjos intimistas, mais minimalistas, levados pelas nuances do piano. Como na faixa de abertura, "É o Amor Outra Vez", de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. "Parece que sou a Diana Krall", brinca Bethânia.

A intérprete deu ambientação elegante a temas de Adriana Calcanhotto ("Tua"), Jorge Vercillo ("O Que Eu Não Conheço") e Ar­­naldo Antunes ("Até o Fim"). E clima interiorano a outras como "Guriatã", de Roque Ferreira, compositor baiano que predomina no repertório de Encantería e assina três faixas em Tua. Como nesta, o campo ecoa em "Remanso", enfeitada pelo bandolim de Hamilton de Hollanda, e "Saudade", belo encontro de vozes com Lenine.

"Somos oito irmãos. Quando nasci, meus pais já estavam cansados de todo verão ir para a praia. Ainda íamos, mas por um menor período. Eles me mandavam para a fazenda. Peguei os dois lados: mar e roça, a música caipira e a do recôncavo baiano", conta Be­­thânia, que no passado gravou "É o Amor", de Zezé Di Camargo e Luciano. "Tenho atração pela coisa melancólica, meio sonhadora, do campo. É como se fosse meu un­­guento, meu conforto".

Tua termina com "Domingo", plácida canção de Roque Ferreira, que nos últimos minutos ganha ares festivos com a entrada do acordeão de Toninho Ferragutti, e se encerra novamente com a delicadeza das notas agudas ao piano. "Roque é um dos grandes compositores do Brasil, na paz da Bahia. Ele gosta do meu trabalho e me conhece de casa. De vez em quando, ele me manda uma música que fez de uma conversa que tivemos, como ‘Domingo’", diz a cantora.

A presença de criações do baiano nos dois novos discos de Bethânia é uma pista de que os trabalhos não são tão apartados assim um do outro, como os motes poderiam fazer supor. Tua discorre so­­bre o amor. Encantería, sobre a fé. Mas, para a intérprete, as duas coisas não se separam. "A minha compreensão do amor é o amor devoto, que festeja. Acho que o amor protege, vacina a gente. É uma redoma. Faz outra pele, livra de tudo. O amor devoto é imprescindível ao homem. Não quero ficar longe dele. Sou uma pessoa que precisa de silêncio. O amor hoje no mundo representa o silêncio", diz.

O verso final de "Fonte" (Saul Barbosa e Jorge Portugal), de Tua, aponta então para Encantería: "Quem ama assim é mesmo Deus". O disco, editado pelo Quitanda, é mais suingado e festivo. A economia de instrumentos ouvida em Tua abre espaço para um som mais encorpado, com percussão abundante e a participação da Orquestra Portátil de Música, formada por alunos da Escola Portátil de Música na faixa-título, de Paulo César Pinheiro.

"Santa Bárbara" inaugura o ál­­bum, em louvação católica se­­gui­­da pelos tambores sagrados do ter­­reno de Oxum de "Feita na Ba­­hia". Duas composições de Roque Fer­­reira que, de cara, revelam o sincretismo religioso ao qual Bethânia se entregou ao longos dessas mais 11 faixas.

Seu irmão Caetano Veloso e o velho amigo Gilberto Gil marcam presença em "Saudade De­­la"(Roberto Mendes e Nizaldo Costa). Reeditam a parceria dos tempos dos Doces Bárbaros (faltou só Gal Costa), numa canção menos religiosa ("Eu Vim Aqui pra Vadiar") e mais amorosa.

Vanessa da Mata reafirma o talento e a personalidade como compositora assinando "Ê Se­­nhora", entre as melhores do disco. "Sete Trovas" encerra Encan­­tería celebrando a fé à música. É de autoria das paranaenses Consuelo de Paula e Etel Frota, a quem Bethânia não conhecia, até que recebeu no Quitanda um disco de Consuelo em que ela havia gravado a música. "É uma música inspiradíssima, parece uma canção de sempre", diz a intérprete.

A entrevista na Estudantina terminou em festa. Bethânia escolheu o lugar para lançar seu disco em agradecimento à homenagem que a última gafieira do país, aberta há 80 anos, lhe prestou ao batizar seu palco com o nome dela. A Orquestra Portátil de Música foi encarregada de tocar, para espectadores como Bethânia e seu irmão Caetano. Ela subiu ao palco apenas uma vez, e os acompanhou em "Encantería". Seu show, mesmo, já tem data marcada para passar por Curitiba. No dia 3 de dezembro, Bethânia canta seus amores devotos no Guairão.

Serviço

Tua. Maria Bethânia. Biscoito Fino. Preço médio: R$ 35,20. GGGG

Encanteria. Maria Bethânia. Quitanda. Preço médio: R$ 35,20. GGGG

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