"Enquanto o mundo bizarro continua a girar."
O verso da poeta Rose Hawthorne (1851-1926), uma das filhas do escritor Nathaniel Hawthorne pilar da literatura norte-americana e autor de A Letra Escarlate , surge para August Brill como uma descrição acurada da vida que leva desde o acidente que o deixou de cama, sob os cuidados da filha divorciada, Miriam.
Ele é o protagonista de Homem no Escuro, novo romance de Paul Auster que sai no Brasil pela Companhia das Letras, antes de ser lançado nos Estados Unidos.
Crítico literário viúvo e septuagenário, Brill alterna lembranças de experiências passadas com a criação de uma história absurda, protagonizada por um certo Owen Brick em uma América alternativa. Este é um traço típico da ficção de Auster: os jogos metalingüísticos.
Brill imagina a história de um jovem comum que, sem qualquer explicação plausível, acorda em meio a uma guerra civil nos Estados Unidos, detonada pela eleição de 2000, quando, graças a uma peculiaridade do processo eleitoral americano, George W. Bush assumiu a Presidência sem a maioria dos votos populares (que, de fato, elegeriam Al Gore).
Com a ação delineada, o leitor de Homem no Escuro entra no jogo. O livro de Paul Auster acompanha a rotina do narrador August Brill que, por sua vez, imagina uma ficção centrada em Owen Brick. Nela, Brick é seqüestrado por um grupo organizado que o obriga a assassinar o homem responsável por criar a guerra: August Brill.
Os truques narrativos de Auster, a esta altura de sua carreira (este é o seu 14º romance em duas décadas), se tornaram manjados. Porque a ficção é uma realidade possível, Brill é o senhor absoluto do mundo habitado por Brick. Os personagens dessa história dentro da história têm consciência que vivem na imaginação do crítico literário e planejam matá-lo para dar um fim ao conflito. Esse esquema fica visível logo no início da viagem, tornando o percurso bastante monótono. Mas o livro não se resume a isso.
Último terço
A 50 páginas do fim, Brill pára de brincar com o destino de Brick para dar atenção à neta Katya. Insone, a garota busca a companhia do avô e pede para ele falar mais sobre a avó, Sonia.
O crítico revê então erros e acertos, tentando encontrar explicações para atitudes que tomou e para outras que deixou de ter. Sonia era uma cantora respeitada e viajava muito em turnês, enquanto Brill ficava em casa, às vezes com a filha, às vezes sozinho. Aos poucos, marido e mulher foram se afastando.
"Eu andava com a sensação de que a minha vida nunca havia pertencido de fato a mim, que eu nunca havia existido de fato, que eu nunca tinha sido real. E, como eu não era real, não entendia o efeito que eu tinha sobre os outros, o dano que eu podia causar, a mágoa que eu podia infligir às pessoas que me amavam", diz Brill.
Apaixonado por uma jovem escritora de "inteligência ardente", ele se separou de Sonia. Depois de viver uma desilusão amorosa com a garota, acabou se reaproximando da ex-mulher, que o aceitou de volta nove anos mais tarde. O balanço que faz da própria vida não é amargo, mas melancólico.
A situação remete ao filme Era uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu, ao qual Brill assistiu com Katya. A neta argumentou que o cinema utiliza objetos inanimados para retratar emoções. Nessa lógica, um relógio pode representar "o passado que vive no presente, o passado que levamos conosco para o futuro".
Brill guardou na memória uma cena do clássico de Ozu em que uma personagem está triste por perceber o egoísmo dos irmãos. A cunhada que a ouve tenta consolá-la com uma frase simples: "A vida é frustrante, não é?".
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Serviço
Homem no Escuro, de Paul Auster. Companhia das Letras, 168 págs., R$ 38.
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