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Quando estudava em um seminário, Mário Bortolotto conseguiu uma cópia da chave da cantina e promovia farras gastronômicas com os amigos. Foi dedurado e acabou expulso. Ainda assim, como todo aquele que um dia foi seminarista, teve sua vida permanentemente marcada pelos anos de estudo religioso. Foi no seminário que teve o primeiro contato com o teatro.

Recusado pelos padres, caiu na vida. Depois de escapar do serviço militar e estudar artes cênicas em São Paulo, voltou para casa, em Londrina, e entrou para a trupe local. Não demorou a criar sua própria companhia – o que aconteceu em 1982, quando tinha 20 anos.

Bortolotto é ator, diretor e dramaturgo. Escreve também romances, livros de poesia e contos. Criou cerca de 50 peças, mais da metade delas – como Gravidade Zero e Brutal – estão reunidas em livro, algo raro entre autores nacionais. Referência no cenário independente, está à frente do grupo de teatro Cemitério de Automóveis e mora em São Paulo. Durante o Londrix 2005 (Festival Literário de Londrina), realizado de 16 a 18 do mês passado, Bortolotto falou com a Gazeta do Povo sobre religião, Jack Kerouac e suas pretensões profissionais. A entrevista aconteceu em uma mesa de xadrez em frente à Biblioteca Municipal de Londrina. Confira, abaixo, os melhores momentos.

Gazeta do Povo – Você é ator e diretor teatral, músico e escritor, todas atividades artísticas. Você tem alguma atividade não artística? Hoje, vive do quê?Mário Bortolotto – Sempre vivi do que eu fiz, sempre vivi de arte, já que você chama assim. (Risos)

Eu não chamo de nada.Sempre sobrevivi de arte, pelo menos. Do que escrevo, do que faço como ator, de fazer trilha sonora, escrever para jornal, faço de tudo para poder sobreviver.

E como você começou a se interessar por teatro?Eu fui seminarista. Fiquei cinco anos no seminário e fui expulso. O que os padres alegaram na época é que eu era um mau exemplo para os outros seminaristas. Eu fazia muita merda. Não era um exemplo de bom comportamento. Fiquei lá dos 12 aos 17 anos e participei de um grupo de teatro. Eu sugeria muita coisa. Montava as cenas. Minhas idéias eram bem-vindas. Não sei se os padres gostavam delas, mas, no grupo eram bem-vindas.

Onde era o seminário?Funciona assim: você faz o ginásio em Ourinhos, o colegiado em Apucarana, Filosofia em Curitiba e Teologia em São Paulo. Ou pode até fazer Teologia na Itália. Fiquei dois anos em Ourinhos e três em Apucarana.

Você é católico de ir à missa?Não. Sou católico igual ao Kerouac. Ele se definia como estranho, solitário, católico, louco e místico.

Você reza?Não rezo oração normal, Pai Nosso, Ave Maria, etc. Mas acredito em Deus, bíblia, anjos descendo com trombetas no apocalipse... só não gosto muito de falar sobre isso. Mas posso falar com você. Na entrevista não tem problema. Não fico falando em bar com a rapaziada. Porque religião, para mim, não é importante. Dogma, doutrina não me interessam. É mais a ética religiosa. Não acredito em padres, freiras, pastores, rabinos, caras que se colocam como se fossem porta-vozes de Deus na Terra, essa bobagem toda. Era por isso tudo, de eu já não acreditar na época, que se criou esse tipo de estranhamento para mim dentro do seminário. Por isso que fui mandado embora de lá. Antes, descolei a chave da cantina do colégio e, sexta-feira, quando tinha uma sopa meio ruim – a bendita sopa –, era o dia em que eu usava a minha chave. De madrugada, levantava e roubava comida – nunca dinheiro. Não era para sobrevivência, era para comer legal. E me deduraram. Quando descobriram que eu tinha a chave, a rapaziada começou a ir comigo. Muita gente. Mas sempre tem o alcagüete, como em qualquer lugar. Ele me dedou.

É uma bela história. Você já escreveu isso?Tenho vontade de escrever. Tem até uma história engraçada: tinha um carinha que morria de medo de ir lá roubar com a gente de madrugada. O seminário está aqui e o colégio está aqui (indicando com as mãos a distância entre um e outro, em Apucarana). Um colégio normal, em que mulher e homem estudavam juntos. Era um colégio muito burguês da cidade e a gente, do seminário, era muito pobre. Éramos os únicos pobres do colégio – em que estudávamos de graça porque ele fazia parte da coligação. A gente morava praticamente junto com o colégio. De madrugada, a gente levantava, descia a escada e estava no colégio. Então a gente roubava não a cantina do seminário e sim a do colégio. Um dia, a gente convenceu o cara que morria de medo de roubar a ir com a gente. A gente levava a fronha do travesseiro e enchia de chocolate. E o mané desceu com o travesseiro junto. Para você ter uma idéia de como ele era mané. Todo mundo pegou sua fronha e levou para cima. Quando a gente foi dividir, o mané tinha roubado só sorvete. Era uma besta...

Você foi ao seminário por vontade própria?Quando eu era coroinha na igreja, de 11 para 12 anos, um dia, o padre perguntou "quem quer ir para o seminário?". Eu levantei a mão na hora e falei que queria. Sempre tive vontade de sair de casa. Não existe nenhuma coisa do tipo "eu não me dava bem com os meus pais". Como eu tinha 12 anos e não podia pegar uma mochila e cair na estrada, queria ir para algum lugar. O seminário era algum lugar. Para mim foi bom, havia uma biblioteca vasta, onde eu li muito. Só entrei no seminário por causa disso. Lá eu fazia muito teatro, aprendi a tocar violão. E pensei: "vou ser expulso daqui logo". Não deu outra.

Você já escreveu 50 peças. É muita coisa em menos de 30 anos de carreira. É por motivo de sobrevivência, fazer uma atrás da outra para não parar?Comecei a escrever com 26 anos mais ou menos. Na verdade, é por vontade de fazer coisa nova sempre. Escrevia porque não conseguia encontrar um texto que pudesse adaptar. Fazer como ator e diretor. Depois que começo a fazer alguma coisa, tenho minha cabeça lá na frente, já quero fazer outra coisa nova. Não me contento de fazer a mesma coisa por três anos. Eu não consigo. Tenho quatro, cinco projetos o tempo inteiro na cabeça. Além dos textos que eu escrevo, quero adaptar um monte de escritores amigos meus que eu gosto pra caramba.

No caso da Kerouac (peça em que Bortolotto trabalha como ator e que teve apresentação lotada no Londrix 2005), você está fazendo carreira com ela, viajando?Eu não faço carreira com nada. Infelizmente até. O Kerouac é um espetáculo que merecia fazer uma carreira maior. Eu não tenho quem venda o espetáculo para mim. Dependo de um cara que ligue de Curitiba (por exemplo) e diga "Mário, você não quer trazer o Kerouac para cá?". Eu me interesso, mas não ando atrás disso. Não tenho tempo para ficar correndo atrás de produtor, ligando. Eu estou cagando. Quero ficar em casa escrevendo. Depois eu quero montar do meu jeito. Estou sobrevivendo assim e não quero mudar.

Por que essa homenagem ao escritor de Pé na Estrada?Costumo dizer que Jack Kerouac é um dos caras que mudou minha vida.

E quais são os outros?Escritores são muitos: Kerouac, Henry Miller, Bukowski, Fellini, Aguinaldo Moraes. Acho que esses são os principais, que mudaram meu jeito de escrever quando eu tinha 20 e poucos anos.

Muita gente está escrevendo teatro, mas é difícil que publiquem. Você é um dos poucos que publicam. Por que os outros não fazem o mesmo?O mercado editorial não se interessa por teatro. Eu publico de forma independente, pela editora Atritoarte, da minha ex-mulher. E meus livros vendem bem. Os três primeiros estão esgotados.

A publicação é para deixar um legado ou vontade de divulgar?As duas coisas. É registro dos textos e para os produtores terem mais acesso ao trabalho. No Amazonas, por exemplo, é muito difícil alguém ver uma peça minha. O livro chega lá e um cara pode ter interesse de montar um texto meu.

Você tem alguma pretensão de fazer parte da literatura de teatro no Brasil?Esses dias me chamaram de pretensioso. Achei engraçado, você não tem como escrever se não tiver pretensão. Acho isso de "quero ficar para a História" um pouco complicado. Eu quero ficar com um trabalho de que tenho orgulho e do qual meus filhos possam ter orgulho.

Você gosta do que conseguiu fazer até hoje?Tenho orgulho de tudo o que eu fiz. O grande barato da minha vida é que não vergonha de nada do que fiz. Mesmo dos textos ruins que escrevi quando eu era mais imaturo e que considero ruins.

Aonde você quer chegar?Quero levar a mesma vida que estou levando. Continuar escrevendo. Falaram que o dramaturgo de gabinete estava fadado a desaparecer. Eu falei que não gosto da expressão. Sou, no máximo, um dramaturgo de quitinete. Talvez, um dia, fazendo o que eu faço, chegue a ser um dramaturgo de apartamento de dois quartos, que é onde eu quero chegar.

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