Uma das características de nosso tempo é a não-linearidade. Essa ausência de "começo, meio e fim" vem sendo captada, absorvida e transformada em elemento literário por muitos autores. João Gilberto Noll, Joca Reiners Terron, Ronaldo Bressane e Daniel Pellizzari são alguns dos escritores brasileiros contemporâneos que, há tempos, realizam obras em que os enredos não comportam mais a estrutura linear, que foi adequada e pertinente, por exemplo, durante o século 19 e, em certa medida, no 20.
A não-linearidade também diz respeito ao que, em geral, se passa no imaginário de qualquer pessoa. Hoje é domingo, para muitos, intervalo; amanhã é feriado, mas isso não significa que obrigações serão suspensas, ao contrário. De repente, uma chamada no telefone celular: é um amigo que há muito não ligava surgem lembranças do passado, podem ser traçados planos etc.
As Vozes do Sótão, narrativa ficcional do escritor paulistano Paulo Rodrigues, fala disso: das muitas vozes que existem e que (obviamente) falam dentro de uma pessoa. No caso, do personagem Damiano. Ele é atormentado por vozes. É adulto, mas desde a infância uma polifonia ecoa dentro dele. A única saída ou solução que encontrou foi buscar refúgio no sótão da casa. O local, escolhido e arquitetado literariamente por Paulo Rodrigues, foi o mais acertado e simbólico possível.
O sótão simboliza o inconsciente, local não-óbvio, com pouca luz, nem sempre visitado. Somente no sótão o personagem vai dar vazão ao que pensa e sente. O sótão é o local onde Damiano escreve o seu diário, que talvez seja real, mas também pode ser imaginário. Não há muita certeza nessa narrativa, e nem poderia ter: afinal, no território-cenário ambíguo (sótão-inconsciente) nada do que é racional tem vez.
As Vozes do Sótão é entrecortado. O texto, diagramado em tipologia normal, é interrompido por parágrafos em itálico, que representam os momenos em que "fala" a voz interior de Damiano, ele no sótão, ele o seu inconsciente. Essa estrutura, essa estratégia, funciona, uma vez que apresenta, em um primeiro momento (sem itálico), o personagem em ação e, posteriormente (em itálico), o que se passa no imaginário dele. Ação e pensamento não se afinam. Damiano está inserido em um contexto hostil e não pode verbalizar o que deseja externalizar.
Damiano é dominado pela confusão e, ao tentar recuperar a própria trajetória, chega a falar de si mesmo como se fosse outro. A falta de clareza refere-se apenas ao estado emocional e psíquico do personagem, porque o autor realizou uma obra de arte. A estruturação, talvez perfeita, é digna de elogios. E, por falar nisso, Paulo Rodrigues é apontado como excelente escritor por Raduan Nassar (de Lavoura Arcaica), um dos mais importantes escritores brasileiros, que não costuma distribuir elogios por aí.
Serviço
As Vozes do Sótão. Paulo Rodrigues. Cosac Naify. 144 págs. R$ 40.GGGG