O norueguês: “quenausgórd”.| Foto: Soppakanuuna/Creative Commons

O quarto Minha Luta é também o mais leve da série. As páginas raramente surgem carregadas de texto. Em nenhum lugar vemos aqueles trechos ensaísticos, audaciosos em sua profundidade, à moda da antiga Europa, e cheios de pensamentos associativos brilhantes e originais, que elevam os volumes anteriores. Tudo aqui é dramatizado, cena após cena, todas elas atraentes, mas sem a gravidade dos livros anteriores, sugerindo um período mais leve e despreocupado da vida de Knausgård.

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Mas o motivo que leva esses livros a parecerem tão reais é que só há um único personagem principal. Apesar de todos os seus dotes, Knausgård nunca nos deixa qualquer impressão que pareça mais marcante dos outros personagens. Tenho só uma vaga noção de seu pai e sua mãe, apesar de ter lido centenas de páginas sobre eles, e as figuras que ele conhece em Hafjord, seus colegas de profissão, seus alunos e as mulheres por quem se apaixona, tendem a se misturar numa coisa só. Você nunca chega a entrar na cabeça dessas pessoas. É impossível entrar nelas sem alterar o foco do solipsismo de Knausgård. Com a maioria dos escritores isso não funcionaria, porque é difícil achar quem seja atormentado assim, ou sagaz, nobre, impiedoso ou autocrítico como Knausgård. Com ele, essa troca é um negócio que vale muito a pena. A mente dele é tão interessante de habitar que não dá vontade de sair dela, pelo menos não mais do que, na vida real, se possa ter vontade de sair de si mesmo. Um dos paradoxos da obra de Knausgård é que, ao morar de forma tão intensa em suas próprias memórias, ele restaura – eu quase diria sacramenta – as do próprio leitor.

Por mais mágico que seja esse efeito, o método que o cria decepciona um pouco. O que me traz de volta ao meu almoço com o autor lacônico desses livros. Não há nada de incorreto nos fatos que Knausgård relata. Lendo o texto sobre a viagem pelos EUA, porém, pude ver o que é que ele estava fazendo. Knausgård queria traçar uma distinção entre os escandinavos e os americanos no tocante aos hábitos de conversação. Na verdade, o motivo pelo qual não fomos capazes de manter uma conversa tinha menos a ver com diferenças culturais e mais com o fato de que somos duas pessoas nervosas e com problemas de autoestima que não estavam confortáveis uma com a outra. Isso não encaixava com o argumento de Knausgård naquela altura do artigo, no entanto. E, por isso, como qualquer escritor profissional, ele usou a parte da história que lhe servia melhor.

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É exatamente isso o que ele faz em Minha Luta. A vida de Knausgård é um sacolão de eventos e recordações, e ele usa o que tem à mão. Ele não mente nem inventa nada (até onde eu sei). Mas o processo de seleção ao qual sujeita suas lembranças para cumprir as demandas da narrativa de sua escrita é elevado a um nível considerável de artifício. Outros escritores inventam. Knausgård rememora. Sua matéria-prima é mais autêntica (talvez), mas os produtos que ela cria não são menos elaborados.

Knausgård encontrou um modo de fazer o leitor suspender a descrença numa época em que essa descrença é, mais do que nunca, difícil de suspender. Mas sua técnica é tão ardilosa que o leitor nem se dá conta.

Na verdade, o domínio de Knausgård dos procedimentos romanescos tradicionais é o motivo pelo qual seus livros não são tediosos, muito pelo contrário – por mais que, na superfície, eles deem a impressão de que deveriam ser. Knausgård está sempre contando uma história, sempre atraindo o leitor para algum envolvimento amoroso, desastre sexual ou crise emocional. Ele dosa certo as quantidades de ambientação, e seu ritmo é impecável. Que coisa maravilhosa é ler um romance experimental que estimula todos os seus nervos ao mesmo tempo em que causa no leitor a mais pura sensação do quanto é incrível a experiência de estar vivo neste planeta – e em nenhum outro.

“Rock-and-roll!”, escreve o jovem Knausgård em seu diário, com 18 anos, tomando coragem para perseguir sua vocação literária. E esse é o espírito do quarto livro: a voz de um rapaz com uma coleção maravilhosa de discos, que sonha ser escritor, escrita pelo grande escritor que ele acabou enfim se tornando.

Jeffrey Eugenides é autor de três romances: As Virgens Suicidas,
Middlesex
(ganhador do Pulitzer) e
A Trama do Casamento
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Tradução de Adriano Scandolara.