Incertezas. Eis uma das marcas da literatura do escritor gaúcho João Gilberto Noll. Os enredos são desarticulados; os personagens, errantes. Não há clarezas. Nem obviedades. O chão, para o eventual leitor caminhar, rui. E uma beleza lírica irresistível seduz, e pode arrebatar, a exemplo de um fragmento aleatório do livro Bandoleiros: "De repente a luz do sol. Penso numa ventarola sob aquele caramanchão. Ficaria ali debaixo pensando de coisa em coisa em toda a tarde. Só que hoje todo cuidado é pouco: a sombra dolente, cada coisa me retém em seu domínio, e eu quero andar".
Os errantes personagens de Noll andam e levam o leitor, mãos dadas, a pontos vários, inesperados. É como zapear na tevê. Uma tragédia no Oriente. O resultado de mais um jogo. Outro homem público enovelado em corrupção. João mata Maria em Curitiba. Ou, então, a leitura do autor a dialogar com o que se passa no imaginário de qualquer humano. Sente-se fome. Vontade de estar onde não está. Um compromisso. Contas a pagar. O celular toca. Um inesperado. Lembranças passadas e anseios futuros. Eis algumas das leituras possíveis que a obra do escritor deflagra.
João Gilberto Noll, em meio ao lançamento do romance Acenos e Afagos, conversou com o repórter da Gazeta do Povo durante a 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que acabou ontem, no Pavilhão do Anhembi. Entre uma xícara de café, um suco de caju e goles de água, Noll comentou aspectos de sua lavra ficcional. "Que é desarticulada e tem menos a ver com a realidade e mais com a poesia." O escritor salientou que a sua prosa não se reporta ao mundo real. "Roço o impossível."
Outras claves
"Eu não precisava ter medo. Que abrisse então a boca e os deixasse voar a céu aberto. Chovia. Dava para sentir a terra se impregnando de umidade, muito lentamente...". Eis um fragmento, aleatório, do recém-publicado Acenos e Afagos, o 13º livro de Noll, agora editado pela Record, que passa a republicar a produção anterior e viabilizará os próximos livros do autor que vive em um pequeno apartamento no Centro de Porto Alegre. "Ouço rádio", diz. Noll escuta e gosta de música. Estudou para se tornar cantor lírico, mas, aos 17 anos, abandonou a música. No entanto, a música não o abandona.
"Não podia aceitar a idéia de que o meu resto de vida não tivesse mais extensão suficiente para abarcar a figura inigualável de um sarará prodigioso." Outro trecho, ao acaso, do recente romance do escritor que, entre uma frase e outra, inesperadamente, dispara: "De repente, agora, aos 62 anos, parece que vivi pouco e não sei se chegarei aos 82 anos." Noll, a exemplo de sua ficção, conduz a conversa para rumos outros: "Queria que as coisas fossem eternas". E segue: "Viver é difícil, mas é bom". Olha para os lados e, após segundos de silêncio, afirma: "A libido pode estar baixa, mas o desejo não tem fim" numa seqüência de idéias-força que, se ele fosse músico (e é), poderia ser chamada de improvisação jazzística.
O não-lugar
Então, no romance Berkeley em Bellagio não é possível precisar se os personagens estão em Berkeley, Bellagio ou Porto Alegre. O autor tem a impressão de que os lugares são quase totalmente iguais. Porto Alegre, por exemplo, ele define como a cidade anti-clímax.
"Porto Alegre é, igual a qualquer festa, uma ilusão." Noll, sem muitas ilusões, sabe que a vida é mais quarta-feira de cinzas do que Carnaval. E isso pulsa em sua ficção. O tempo todo. "Afinal, literatura também é fazer do feio, o bonito."
"Tudo em volta era feito de sons que valiam por si mesmos, a língua nova, nenhum fonema tinha serventia para se entender o que as imagens do mundo por si só não davam conta de fazer". Mais um recorte, este do romance Berkeley em Bellagio. E, após segundos de silêncio, Noll revela: "Toda a minha literatura vem do inconsciente." Uma interrupção. Outros repórteres o reconhem, querem conversar, mas ele diz estar ocupado. E pede mais um copo com alguma bebida não-alcóolica.
Miragens
"O gaúcho ainda se fantasia de gaúcho", diz, referindo-se a conterrâneos que trajam roupas típicas. Em seguida, enfatiza que não usaria tais "personagens" na ficção. "Jamais faria um romance realista." Analisa que a literatura convencional, realista, dos anos 1930, paralisa literariamente o Rio Grande do Sul. "Grande parte da literatura gaúcha, atual, ainda está na década de 1930." E, imediatamente, declara: "A minha ferramenta é a mente. Não posso ver televisão."
Carnavalização
Antes de partir, Noll confessa não saber se é disperso ou concentrado, e fala: "Eu gosto das aparências". Comenta que a fragmentação de sua literatura conversa com pequenas e possíveis disfunções (dos humanos).
"Muitas frases dos meus romances são longas por que as minhas idéias não querem sossegar", diz. Sobre o processo inventivo, declara que escreve com liberdade, sem saber onde vai chegar e posteriormente reescreve o início. "Faço a carnavalização da linguagem."
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais
Doações dos EUA para o Fundo Amazônia frustram expectativas e afetam política ambiental de Lula
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas