Em São Paulo, Alexandre de Maio desenha para expressar com mais intensidade as histórias que quer contar, como se as palavras não fossem suficientes para narrar os crimes, a violência ou a exploração sexual no Brasil. Em Curitiba, Robson Vilalba também usa os traços para tratar de assuntos sérios com diversos públicos. Os dois são expoentes de um segmento que vem crescendo e se consolidando no Brasil, o do jornalismo em quadrinhos.
Nascido em São Paulo em 1978, de Maio nunca estudou jornalismo nem ilustração, mas editou durante uma década uma revista sobre a cultura hip-hop, que se tornou referência quando a internet ainda não era a avalanche de informações que é hoje.
Ele é, além disso, um dos pioneiros desta forma de fazer reportagens ilustradas em um país onde a realidade costuma estar vários passos na frente da ficção.
“O jornalismo em quadrinhos tem a força do desenho, ativa a nossa memória. É possível fazer pautas muito complexas com ilustrações que nos trazem diferentes referências, de modo que têm um impacto mais rápido”, afirma em entrevista à AFP.
De Maio diz que os quadrinhos brasileiros estão passando por um bom momento e destaca o trabalho de Vilalba, artista gráfico da Gazeta do Povo, e seu livro sobre a ditadura militar, “Notas de um Tempo Silenciado”, e de Marcello Quintanilha, que recentemente ganhou um prêmio no importante festival de Angoulême, na França.
“Quando eu comecei, não havia praticamente ninguém fazendo nada parecido com o jornalismo em quadrinhos. Agora há mais iniciativas”, comenta.
Memória além da notícia
A reverência de De Maio ao trabalho de Vilalba se soma a um reconhecimento mais amplo. Em 2014, o artista conquistou o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, na categoria “Artes”, com a série ”Pátria Armada, Brasil”, publicada pela Gazeta entre março e abril daquele ano. As histórias que compunham a série foram posteriormente organizadas em um livro , constituindo oito dos capítulos de “Notas de um Tempo Silenciado”, publicado em janeiro de 2015.
Influenciado por nomes como Joe Sacco, Art Spiegelman e mesmo De Maio, Vilalba destaca o fato de que “o jornalismo em quadrinhos transforma a relação do leitor com a informação por conduzi-lo a acessar uma memória emotiva que vai além da notícia”. Enxerga, ainda, o caráter democrático dessa linguagem na medida em que “permite que se trate de assuntos sérios com diversos públicos, desde os que são atraídos inicialmente pelo traço até os mais doutos, que chegam à obra pelo interesse jornalístico”, completa.
Aliando um traço que transita entre o realismo e a insinuação, Vilalba busca dar o mesmo peso tanto para o discurso construído através do texto quanto pela imagem: “Elas podem se desenvolver paralelamente ou de forma complementar, depende da resposta sensível que você quiser provocar no leitor, reflete. Há ainda uma grande preocupação com a pesquisa para a construção da narrativa, onde o artista opta pelo aprofundamento através de notas de rodapé, ou mesmo por apêndices com as referências da pesquisa.
Temas perigosos
De Maio está sentado na varanda do seu apartamento em um bairro da zona norte de São Paulo, Casa Verde, do outro lado do rio Tietê. Ao longe se vê os grandes edifícios do centro da metrópole. “Quando são temas perigosos, pode-se preservar melhor a identidade das pessoas, reconstituir cenas que não foram registradas”, acrescenta.
A partir de 2010, De Maio publicou reportagens sobre questões indígenas, prisões e violência policial. Também abordou a vida nas favelas e o “poliamor” - este último para a edição brasileira da Playboy.
Em 2013, conseguiu o apoio do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo para viajar a Fortaleza e realizar uma reportagem sobre tráfico e exploração sexual de meninas, tendo em vista a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Trabalhou nesse projeto junto com uma repórter da Agência Pública, reconhecido meio de comunicação alternativo.
Também colaborou com outros sites, como o Catraca Livre, e grandes jornais, como o Estadão e a Folha de São Paulo.
Em 2016, lançou na França as versões dos seus livros “Desterro” - publicado anos antes com o escritor paulistano Ferréz - e “Geração Favela”, sobre jovens das comunidades. Junto com duas correspondentes francesas que trabalham no Brasil, apresentou “Je suis Rio” (Eu sou Rio), sobre saraus de poesia em bairros pobres.
“Com a revista eu fazia jornalismo na rua. Ia às periferias, viajava por todo o Brasil, fazia contatos. E isso me deu uma experiência e visão do país muito importantes que me ajudaram muito em meus projetos futuros”, conta De Maio.
Foram publicadas 180 edições da revista Rap entre 1999 e 2009, com milhares de exemplares cada uma. Este gênero musical já estava se massificando no final da década de 1990, quando o grupo Racionais MC’s, da periferia de São Paulo, estabeleceu um marco com mais de um milhão de cópias vendidas do seu disco “Sobrevivendo no Inferno”, no qual protestam contra uma cidade violenta e excludente.
Eram os mesmo temas que interessavam De Maio, que também nasceu na periferia da cidade, onde continua vivendo. “O rap falava de tudo isso que eu vivia. Eu já desenhava desde pequeno, mas não queria fazer histórias de super-heróis, embora eu as adorasse, mas da vida real”, conta De Maio, casado e pai de três meninas. “E eu quis usar a força do desenho para destacar o que tinha que ser mostrado”, enfatiza.
Referências
Entre suas principais referências também estão o trabalho do maltês Joe Sacco, autor de “Palestina”, assim como o de Art Spiegelman e seu monumental romance gráfico “Maus”, sobre o Holocausto, premiado com o Pulitzer de jornalismo.
As primeiras edições da Rap traziam textos e historietas, mas em pouco tempo deixou o desenho, e o retomou anos depois, quando Ferréz o convidou a participar do comic Desterro, que terminou de ser publicado por completo em 2013.
No momento, De Maio está trabalhando em uma história sobre quadrilhas dedicadas a delitos com cartões de crédito. Ele mesmo investiga e faz entrevistas, prepara o roteiro e decide como a informação será distribuída.
“O desenho se junta com o texto e tudo isso é muito poderoso. Pode-se chamar a atenção para grandes temas”, reflete. “Mas grandes poderes trazem grandes responsabilidades, como se diz no Homem Aranha”, acrescenta, rindo.
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