O que aconteceria com as artes se os EUA fossem transformados num governo autoritário? Se as liberdades fundamentais fossem postas em xeque, se um líder poderoso reunisse todo o peso regulador do Estado e começasse a utilizá-lo para castigar sistematicamente seus inimigos e recompensar seus aliados, se o país fosse precipitado em crises constitucionais cada vez mais severas, se os únicos rótulos políticos que importassem fossem se você está com o Líder ou com a Resistência – onde ficariam as artes nisso?
Os principais nomes do mundo artístico vêm demonstrando um nervosismo generalizado em relação à candidatura de Donald Trump, que, em seu discurso, mais do que qualquer grande figura política recente, vem fazendo um uso excessivo do autoritarismo. Eles não se dizem particularmente preocupados, porém, dada a tradição robusta do país de liberdade de expressão. Mas reconhecem que as artes sofreram mudanças consideráveis desde a última vez que o setor foi testado por uma crise política – os debates de guerra cultural do final da década de 1980 durante as presidências de Ronald Reagan e George H. W. Bush. E algumas dessas mudanças poderiam fazer das artes um ponto de centelha para as forças culturais mais amplas liberadas pela retórica de Trump.
Boa parte dos trabalhos artísticos mais interessantes hoje são feitos por grupos que unem sua criatividade a questões como imigração, a causa dos sem-teto, a diversidade cultural e outras causas de justiça social, o que poderia fazer deles um alvo. As artes também vêm gozando de um desanuviamento em relação aos líderes políticos nos últimos anos, mas esta é uma relação frágil. O The National Endowment for the Arts testemunhou altos e baixos em seu orçamento nos últimos oito anos, mas ainda não foi formalmente reautorizado pelo Congresso desde 1993. Um presidente que fosse mais incisivo nessa questão seria capaz de efetuar uma reestruturação radical na agência.
E depois tem ainda a pura imprevisibilidade de Trump, que não tem demonstrado muito interesse em arte ao longo da sua campanha, mas que poderia facilmente fortalecer energias anti-artísticas latentes, porém poderosas, em todos os níveis da sociedade dos EUA.
Boa parte dos trabalhos artísticos mais interessantes hoje são feitos por grupos que unem sua criatividade a questões como imigração, a causa dos sem-teto, a diversidade cultural e outras causas de justiça social, o que poderia fazer deles um alvo.
Trump, por exemplo, já expressou admiração pelo presidente russo Vladimir Putin, e é fácil imaginá-lo seguindo o exemplo de Putin, ignorando casos de vigilantismo e atos locais de opressão aparentemente aleatórios. Com multidões violentas (tanto da esquerda quanto da direita) atacando o processo eleitoral americano, o país pode estar em vias de entrar numa nova era de autocensura e policiamento cultural.
Se nos valermos das experiências passadas com repressão cultural, bem como das coisas que Trump já disse e as extrapolações plausíveis baseadas na história e ciência política do autoritarismo, o que segue aqui é um esboço de como as artes poderiam se enquadrar numa nova realidade política, como poderiam lidar com uma situação que nunca aconteceu antes e, no entanto, já aconteceu mais vezes do que devia.
A escultura tosca
Em Nova York, algumas semanas após a posse de 20 de janeiro, surgiu uma escultura, de fabricação tosca, do novo presidente sentado num vaso sanitário, usando a Constituição como papel higiênico. Ela se encontrava numa galeria em Chelsea, e a maioria dos críticos e colecionadores de arte a ignoraram, mas os transeuntes acharam graça. Meses depois de ter sido retirada, o presidente fez menção a ela num comentário espontâneo para um grupo da igreja em visita a Washington.
“É uma desgraça”, afirmou. “E eles pegam o dinheiro do contribuinte para fazer essa imundície”. Ele ridicularizou o artista e o chamou de preguiçoso e “perdedor”.
Esse foi o seu primeiro comentário mais substancial sobre arte. Equipes de verificação de fatos apontaram que nem o artista, nem a galeria haviam recebido verba pública, mas, antes que a poeira toda baixasse, alguém fez uma pichação racista na janela de uma galeria do outro lado da rua. Os vândalos acertaram o bairro, mas erraram o endereço. Muitos no mundo das artes acharam graça nisso, mas outros ficaram preocupados.
O presidente tinha outras coisas para lidar, mas seus comentários encorajaram o Congresso a fazer audiências para o financiamento público das artes, o que se deu mais rápido do que os contatos congressionais do Smithsonian Institution e da National Gallery of Art esperavam. E, pela primeira vez na memória pública, parecia que o Congresso poderia cortar ou eliminar o apoio a ambas as instituições.
Exposição mexicana
Infelizmente, foi durante essas audiências que estava programada para entrar em cartaz, na National Portrait Gallery, uma exposição planejada havia muito tempo, que celebrava a obra de um ativista trabalhista de ascendência mexicana. Quando a ideia da exposição foi mencionada alguns anos antes, ela teve apoio unânime dos chefes do museu. Mas agora, sem dizê-lo de forma explícita, os oficiais do Smithsonian sugeriram adiar a abertura. Os curadores foram firmes, porém, e o show continuou como planejado.
Com multidões violentas (tanto da esquerda quanto da direita) atacando o processo eleitoral norte-americano, o país pode estar em vias de entrar numa nova era de autocensura e policiamento cultural.
Ninguém teria prestado muita atenção se não fosse pela prisão, alguns dias depois, de um homem que jogou tinta numa das imagens expostas. Os canais da TV por assinatura noticiaram a história, e, pelo que se descobriu, o homem tinha vínculos com o movimento Antissantuário, que havia atraído um grande número de membros nos primeiros meses da nova administração. Os defensores do movimento tinham problemas com regulamentos locais que encorajavam ou exigiam que as cidades não cooperassem com oficiais federais de imigração. Agora eles estavam particularmente furiosos, visto que a administração parecia ter dado para trás em algumas das promessas anti-imigração mais linha-dura feitas durante a campanha.
As artes de repente conseguiram a atenção do presidente outra vez. Repórteres perguntaram se ele condenava ou não o ato de vandalismo contra a exposição. Ele evitou uma resposta direta, mas deu uma bronca no Smithsonian por não dedicar mais atenção aos “grandes americanos”. O artista ativista, na verdade, era nativo de Yuma, no estado do Arizona, mas isso não impediu que houvesse todo dia uma nova reunião de manifestantes. Após novas tentativas de vandalizar a exposição, o Smithsonian acabou encerrando-a, tendo em vista “o melhor interesse da segurança pública”. O Smithsonian sofreu duras críticas por sua decisão, mas o instituto, com efeito, havia sido castrado nesse episódio.
Os líderes de outras instituições culturais assistiram nervosos ao que se sucedeu. Poucos dependiam de apoio federal, mas algo estranho começou a acontecer no mundo da filantropia corporativa. Depois da intervenção da Federal Trade Commission, a fim de evitar uma grande fusão corporativa multibilionária – segundo boatos, o presidente desgostava pessoalmente de um dos executivos-chefes –, uma sombra recaiu sobre o setor. Líderes comerciais que anteriormente costumavam delegar estratégias corporativas de doações para subordinados de confiança agora demonstravam um interesse muito mais pessoal em cada decisão tomada.
Um sentimento de cautela abalou até mesmo as partes já tradicionalmente mais cautelosas do mundo das artes. Um grupo de quatro companhias de ópera que planejava produzir o “Fidelio”, de Beethoven, abandonou discretamente os planos de apresentá-la fazendo referência ao escândalo de Abu Ghraib de 2003, com prisioneiros vestindo macacões alaranjados e guardas em uniformes militares americanos. Ninguém disse nada sobre o risco de uma polêmica em potencial. Em vez disso, a organização só comentou que a produção precisava agradar um público mais amplo em várias cidades diferentes, por isso deveria ser mais tradicional.
História “guetificada”
Após um dia massacrante de conferências na convenção Americans for the Arts de 2017, um grupo de executivos comparou suas anotações e todos perceberam algo curioso. Todos eram capazes de citar pelo menos um membro do comitê que havia se revelado como um apoiador entusiasmado do presidente. O chefe de uma importante companhia regional de dança descreveu a situação nos seguintes termos, acerca de uma colega: “Acho que ela nunca tinha comentado nada nas reuniões antes, quando, do nada, ela me pergunta por que estávamos reservando verba para o Mês da História do Negro Americano. Ela deu um longo discurso sobre como todas as vidas são importantes e que nem mesmo os afro-americanos querem que sua história seja ‘guetificada’”. A ideia ganhou espaço, e a companhia cancelou seus planos de eventos de divulgação para fevereiro de 2018.
Quando a Americans for the Arts se reuniu um ano depois, o humor havia mudado da preocupação para o pânico. Um grande organizador de eventos artísticos no centro-oeste foi obrigado a cancelar as turnês de um coral russo, de um balé folclórico chinês e da Orquestra Nacional da França, por não ter conseguido tirar os vistos em tempo. No Lincoln Center, em Nova York, um concerto de oud – um tipo de alaúde árabe – foi cancelado quando o solista, que era de ascendência árabe, foi detido por vários dias pelas autoridades da imigração. Ele acabou sendo liberado, mas era tarde demais para dar o concerto. O chefe da Filarmônica de Nova York escreveu um artigo de opinião, bastante carregado, para o New York Times, denunciando a situação ultrajante, mas isso só resultou em protestos do lado de fora do David Geffen Hall. Alguns assinantes de longa data do jornal clamaram para que ele fosse despedido por “enfiar política na música”.
Atentado na galeria
Por volta do verão de 2018, o mais quente já registrado, parecia que a política havia se infiltrado em todos os setores culturais. No topo das bilheterias estava “Desejo de Matar VII: Guerra nas Fronteiras”, que revisitava a antiga série dos filmes de vigilante de Charles Bronson, saindo bem na época em que começaram as deportações no Texas e no Arizona. Neste clima político, uns poucos líderes da classe artística acharam que era uma boa ideia utilizar um pequeno coletivo de artistas na Filadélfia para oferecer abrigo a pessoas em risco de deportação. Alguns membros do grupo foram feridos após um atentado numa galeria que eles mesmos haviam renovado numa quadra decadente da zona leste da cidade. Vídeos, gravados em celulares, em que os artistas condenavam o atentado, ainda com as roupas sujas de sangue, acabaram viralizando, mas as reações a ele refletiam a polarização do país. O presidente mais tarde deu risada de alguns dos artistas no vídeo, imitando seu jeito de falar, de modo a sugerir que eles estavam sendo sensíveis demais: “Ai, a gente não se sente seguro, mimimi, a gente não se sente seguro”, ele disse. Depois acrescentou, de forma mais ameaçadora: “A arte está cheia desse tipo de gente”.
As artes de repente conseguiram a atenção do presidente outra vez. Repórteres perguntaram se ele condenava ou não o ato de vandalismo contra a exposição. Ele evitou uma resposta direta, mas deu uma bronca no Smithsonian por não dedicar mais atenção aos “grandes americanos”.
A esta altura, o mundo das artes se dividia em dois grandes campos – os “preservacionistas”, que defendiam que a única coisa que importava no momento era preservar as instituições artísticas tanto quanto possível até a próxima eleição, e os “puristas” (que não gostaram muito do rótulo), para quem o novo autoritarismo era em essência um problema cultural e não político, e por isso os principais nomes das artes tinham um dever de “resistir”.
Mas era difícil saber a que eles deviam resistir e de que forma. Um teatro no Texas foi fechado indefinidamente pelos bombeiros depois que um comediante zombou do presidente numa noite de microfone aberto. Uma cidade tirou umas velhas leis anti-obscenidade do baú para impedir um festival de cinema LGBT. Mesmo com alvará obtido de forma legítima, um festival de música latina foi cancelado pela polícia, que citou uma lei de controle de barulho de 1935. Um comitê escolar no Kansas exigiu um “aviso de gatilho” antes de uma produção de “As Bruxas de Salém”, de Arthur Miller, que levou aos administradores da escola a cancelarem a apresentação. Em muitos casos desses eventos aparentemente isolados, as pessoas recorreram nos tribunais, mas as cortes de justiça estavam sobrecarregadas de processos.
Calúnia e difamação
Um dos casos que o público mais acompanhou de perto foi um processo por calúnia e difamação contra a maior editora do país na área de peças teatrais, que distribuiu uma sátira popular chamada “MacTrump”, que zombava claramente dos oficiais da administração. Esse caso foi uma “abertura” radical para as leis de calúnia e difamação, permitindo-as que visassem obras ficcionais, e a empresa foi condenada a uma indenização de US$140 milhões. Ela recorreu da decisão, e o caso continua em andamento.
A sátira fez sucesso nos campi universitários, o último reduto dos “puristas”. Mas os líderes das principais universidades tinham cada vez mais medo de perder verbas federais para pesquisa e bolsas. Em janeiro de 2019, oficiais da University of California em Davis exigiram que o departamento de teatro adiasse uma produção de “MacTrump” até que o caso nos tribunais fosse decidido. Os alunos se recusaram e deram prosseguimento à apresentação. A polícia da Universidade entrou no teatro e usou spray de pimenta contra o público e os atores, e tudo foi filmado. Um professor de teatro condenou as táticas da “nova Gestapo” usadas no incidente.
O presidente deve ter assistido à entrevista, porque tratou do tema na manhã seguinte na chamada diária em um talk-show matinal popular. Ele negou qualquer tipo de acusação de censura, mas falou do poder que as pessoas devem ter de criticar aquilo de que não gostam. Um dos apresentadores do programa lhe perguntou se ele concordava com as afirmações de um crítico de destaque de que a arte estava morta nos EUA.
“A arte nos EUA? Morta?” ele repetiu, incrédulo. “Dá só uma olhada no mercado de arte. Está de vento em popa. Nunca esteve melhor”.
E ele tinha razão. Um grande Rothko havia sido vendido recentemente por mais de US$150 milhões para um colecionador de arte, amigo do presidente, que era o chefe do National Endowment for the Arts. Para a surpresa de muitos, a agência havia sobrevivido às audiências do Congresso e agora prosperava com sua nova iniciativa patriótica: “Fazer a Arte Ser Grande Outra Vez”.
*Philip Kennicott é crítico de Arte e Arquitetura do Washington Post e vencedor do Prêmio Pulitzer.
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