Lançamento
Uma Vida em Cartas
George Orwell. Organização de Peter Davison e Mário Sérgio Conti. Tradução de Pedro Maia Soares. Companhia das Letras, 526 págs., R$ 43. Cartas.
Caro camarada Serguei Dinamov,
Lamento não ter respondido antes a sua carta datada de 31 de maio, mas acabei de voltar da Espanha.[...] Devo lhe dizer que trechos da segunda metade tratam de temas que podem parecer triviais fora da Inglaterra. Eu estava preocupado com eles no momento da escrita, mas minhas experiências na Espanha me fizeram reconsiderar muitas de minhas opiniões.
Ainda não me recuperei completamente do ferimento que sofri na Espanha, mas quando estiver disposto a escrever de novo vou tentar escrever algo para você [...] Porém, gostaria de ser franco e, portanto, devo dizer-lhe que na Espanha servi na milícia do POUM, que, como você sem dúvida sabe, foi duramente denunciado pelo Partido Comunista e foi recentemente proibido pelo governo; também que, após o que vi, estou mais de acordo com a política do POUM do que com o Partido Comunista. Digo-lhe isso porque pode ser que sua revista não queira ter contribuições de um membro do POUM, e eu não quero me apresentar a você com pretextos falsos. Fraternalmente,
George Orwell, 31 de julho de 1937.
Na década de 1920, após trabalhar cinco anos como agente da Polícia Imperial britânica na Birmânia (atual Myanmar), onde nasceu, George Orwell (1903-1950) "largou tudo" e abraçou sua carreira literária.
Foi conhecer de perto a vida das massas ignaras, vagando pelos bairros proletários de Londres e Paris e zonas operárias do norte da Inglaterra, até conseguir consolidar uma carreira no jornalismo. Alguns anos, e muitos ensaios, resenhas e críticas depois, Orwell já era considerado um dos escritores mais importantes do século 20 por livros como A Revolução dos Bichos e 1984.
A edição brasileira de Uma Vida em Cartas permite acompanhar essa peculiar trajetória do escritor narrada pelo texto inconfundível do próprio Orwell. Nas centenas de cartas transcritas, o escritor britânico corresponde-se com as pessoas que exerceram influência sobre sua vida e produção literária. A obra contextualiza os principais momentos da vida do autor em meio a seu ambiente político, familiar e profissional.
Com muitas notas críticas e explicativas do organizador do volume, Peter Davison, o livro fornece base para a compreensão de fatos biográficos como o sofrimento decorrente da tuberculose e a militância antipacifista durante a Segunda Guerra Mundial e, por outro lado, do nascimento dos romances e ensaios mais notórios.
Davison chama a atenção para algumas facetas insuspeitadas do autor. "Havia um conflito não resolvido no seu eu mais profundo que o tornava um personagem tão contraditório." Sempre "armado" contra a religião organizada desdenhava da ideia da vida após a morte , Orwell era, no entanto, casado na igreja, batizou os filhos e pediu para ser enterrado com os rituais da igreja anglicana.
Também tem destaque a troca de cartas com a mulher, a psicóloga Eileen OShaughnessy (1905-1945), que faleceu prematuramente, causando uma dor profunda que o cavalheiro Orwell se esforçava em disfarçar.
Prolífico
O volume de correspondência mostra que Orwell escrevia o tempo inteiro. Esforçava-se, inclusive, para responder cartas de pessoas que ele mal conhecia. Assim mesmo, suas obras completas têm 20 volumes já foram descobertas 1,7 mil de suas cartas e o diário ultrapassa as 500 páginas.
Seus biógrafos e editores dizem, no entanto, que existe material inédito: cadernos com as anotações sobre a sua participação na Guerra Civil Espanhola, por exemplo, teriam sido roubados de seu hotel por agentes da polícia política da União Soviética e, provavelmente, estão escondidos em algum arquivo na Rússia.
Em uma das cartas publicadas no livro, Orwell fala de sua experiência na Guerra Civil Espanhola (leia trecho nesta página).
Em 1937, o autor levou um tiro no pescoço que por pouco não o matou. Foi hospitalizado e ficou sem voz por algum tempo. Enquanto convalescente, stalinistas locais e agentes soviéticos o perseguiram por estar engajado na milícia do Partido Operário de Unificação Marxista, o Poum, organização hostilizada por Moscou. Orwell viveu na rua e dormiu em igrejas até que conseguiu escapar da Espanha com Eileen.
De volta à Inglaterra, escreveu inúmeras cartas explicando por que a União Soviética destruíra o aparelho, prendera e perseguira os seus militantes.
Essa experiência com o totalitarismo comunista, por certo, serviu de referência para a fábula de A Revolução dos Bichos e também para o romance 1984.
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