As crianças que nasceram quando Luis Fernando Verissimo parou de desenhar "As Cobras", em 1997, já andam, já falam e já perguntam qual é o sentido da vida. Para quem acompanhava a dupla de répteis mais bem pensantes do planeta, "As Cobras" saíram de cena no outro dia, e deixaram imensas saudades. Agora, para consolo dos fãs, chega às livrarias "As Cobras, antologia definitiva", edição caprichada de quase 200 páginas e 470 tirinhas (no detalhe), que reúne o melhor do serpentário. Mas chegar a esse número não foi fácil, como explica Isa Pessoa, da Editora Objetiva.

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"Em quase 30 anos, Verissimo deve ter desenhado mais de duas mil tiras, já que elas começaram a ser publicadas aos domingos e depois passaram a ser diárias, ou quase", diz ela. "A Fernanda Verissimo (filha de Luis Fernando) nos ajudou muito, porque conhecia bem o material e chegou a fazer uma primeiríssima triagem. De qualquer forma, quando as caixas chegaram na editora, tentamos traçar o mapa das cobras. Por onde andaram e onde deixaram seus rastros impagáveis? Assim definimos o roteiro, editando o material por blocos", frisa.

As Cobras nasceram na "Folha da Manhã", de Porto Alegre, em plena ditadura militar; além de divertir o distinto público, tinham a delicada missão de passar o recado nas entrelinhas. O regime da época, além de achar que a imprensa abusava do direito de informar, não tinha qualquer pudor em eliminar o que lhe parecia manifestação de mídia golpista. Jornalistas e humoristas trabalhavam numa fronteira delicada, a um passo do censor.

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Os desenhos tinham melhor sorte do que os textos. O humor gráfico tem uma conotação lúdica, infantil - e parecia, talvez, menos ameaçador do que o seu irmão escrito. Ou, como observa Verissimo, também é possível que os censores entendessem ainda menos os desenhos do que os textos. Assim é que a trupe das Cobras conseguiu serpentear livre, leve e solta entre tesouras e teorias conspiratórias. E, por incrível que pareça, se manteve atual até os dias de hoje.

"As tiras políticas, ao contrário do que imaginávamos, não envelheceram", diz Isa. "Nossa preocupação era manter a piada e não perder o leitor, mas a crítica das cobras se concentra no ato político e seu contexto, como a corrupção, o tormento das eleições, e assim por diante", acrescenta.

Outras obsessões da dupla, como o fim do mundo, Deus, o futebol, o espaço, foram contempladas em separado - as cobras emitem opinião sobre tudo, mas seria um desperdício perder algum veneno sobre temas que lhes são mais caros... Assim, a preguiça para o banho frio ou a angústia diante do universo mereceram blocos à parte, como o que abre o livro, "As cobras existencialistas".

Por que cobras? Porque são fáceis de desenhar, "só pescoço", como diz o autor, que se considera mau desenhista, apesar do sucesso dos seus cartuns e da tirinha Família Brasil, que continua em cartaz até hoje na "Zero Hora" e no "Estado de S. Paulo", aos domingos. Embora Verissimo ache que as primeiras cobras eram horrorosas e muito mal ajambradas, elas viraram xodó dos leitores assim que saíram do ovo.

Em 1977, ganharam uma primeira antologia ("As Cobras e outros bichos", L&PM), mas nem por isso ficaram blasées. A essa altura já tinham ultrapassado as fronteiras do Rio Grande do Sul e eram curtidas no país inteiro, mas continuaram gentis e perplexas, questionando o mundo à sua volta e dividindo o espaço da tirinha, generosamente, com uma galeria de personagens inesquecíveis, como Queromeu, o corrupião corrupto, Dudu, o alarmista, Sulamita, a pulga lasciva... As Cobras só eram perversas com as minhocas, a quem espezinhavam sem dó nem piedade: "Sabe qual é a diferença entre uma minhoca e uma serpentina? A serpentina pelo menos é útil uma vez por ano." Às minhocas, completamente destituídas de amor próprio, só restava suspirar.

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As cobras sobreviveram à ditadura, mas não aos 60 anos de Luis Fernando Verissimo, que achou que não pegava bem um senhor sexagenário a desenhar cobrinhas. Em 2006, por ocasião do lançamento da "Terra Magazine", elas ressuscitaram brevemente, para alegria dos fãs - mas logo se recolheram novamente ao silêncio, de onde, a julgar pela disposição do autor, não sairão tão cedo.