Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Manoel de Barros

As coisas simples da vida

É até fácil encontrar um escritor que não goste de computador. Mas conhecer um que resiste inclusive à máquina de escrever causa espanto. Assim é Manoel de Barros, poeta que se diz fiel ao grafite. "Quem descobre a palavra poética pra mim é o lápis", disse em entrevista ao Caderno G.

Barros completa 90 anos em 19 de dezembro e acaba de lançar Memórias Inventadas – A Segunda Infância (Planeta, 80 páginas com iluminuras de Martha Barros, R$ 34), a parte dois da trilogia em que pretende recontar e, de certa forma, recriar a sua vida. Advogado, fazendeiro e poeta, viu sua obra ser reconhecida nas últimas duas décadas, culminando com o Prêmio Nestlé de Literatura em 1997.

Autor de 23 livros, cinco deles ilustrados pela filha Martha, Barros parece defender as coisas simples da vida. "Ainda gosto de fazer versos, gosto de admirar, gosto de amar, gosto de gostar." Sobre a chegada aos 90, diz que o bom é "receber a infância inteira de novo" e o ruim, "arrastar chinelo em casa".

O poeta pediu que as perguntas do Caderno G fossem enviadas por e-mail para o seu filho João. Embora tenha sido lacônico nas respostas – que vieram duas semanas depois –, Barros demonstrou algum senso de humor, como quando diz que um dos livros "recentes" que mais gosta é O Novo Testamento.

Fã de Dalton Trevisan e do "cinema de arte" de Federico Fellini e Luis Buñuel, o poeta fala sobre verdade, ficção e a importância da inércia na entrevista a seguir.

Gaderno G – A trilogia que o senhor compõe – da qual já foram lançados A Infância e a Segunda Infância – tem um título curioso: Memórias Inventadas. Como o cineasta Buñuel, o senhor também acredita que a memória é capaz de criar lembranças que nunca aconteceram da mesma forma que apaga outras que existiram?

Manoel de Barros – Todo artista é mágico. Pode lembrar de coisas que nunca existiram e pode criar o que não existe.

A frase "Tudo o que não invento é falso" abre o novo livro. Falso em um sentido poético?

Toda a invenção poética é verdadeira porque vem das nossas primeiras percepções.

Certa vez, o senhor disse explorar "os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo ‘lugar de ser inútil’". Em O Livro sobre Nada, escreveu: "a inércia é o meu ato principal". Em que medida esse "não fazer nada" faz parte de sua rotina e como a poesia se encaixa nela?

A poesia precisa ter todas as licenças para dizer coisa nenhuma. Eu tenho medo do nada desaparecer. Se acontecer isso a poesia acaba. Porque a poesia é a virtude do nada.

Qual a principal diferença entre o escritor que publicou Poemas Concebidos sem Pecado (1937) e o autor de Memórias Inventadas – A Segunda Infância (2006)?

No primeiro livro eu dava notícia da minha infância. Nos outros eu invento novas infâncias. Para ser mais correto: nos outros eu busco lembranças infantis.

Na hora de escrever, o senhor continua fiel ao lápis? Por quê?

Continuo fiel ao lápis. Só sei escrever a lápis. Sempre tenho a impressão que o lápis recria melhor que as máquinas. Acho mesmo que quem descobre a palavra poética pra mim é o lápis.

Conheço pessoas que, depois de se tornarem avós e bisavós, passaram a se concentrar em pequenos prazeres: uma boa refeição, um bom vinho, coisas assim. Hoje, qual é sua maior fonte de prazer?

Ainda gosto de fazer versos, gosto de admirar, gosto de amar, gosto de gostar.

"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia." O senhor ainda pensa assim?

Às vezes sou tentado a escrever uma história. Com o andar da história, começo a eliminar frases. Depois palavras. Depois sílabas. A história vira poema. E, às vezes vira uma só palavra, como o conto do italiano. Por isso que faço o Nada quando quero contar alguma coisa.

O que mais o agrada (e o incomoda) no fato de chegar aos 90?

Chegar aos noventa não adianta nada nem para o corpo nem para a poesia. Minto: as lembranças remotas aparecem mais. Recebo a infância inteira de novo. Só que a gente enfeita mais a infância. É o que mais agrada. E o que mais incomoda é arrastar chinelo em casa.

Um dos maiores impactos que experimentou como leitor foi com os escritos de Arthur Rimbaud. Hoje, quais são os autores que o senhor procura ler?

Entre os nacionais leio (Guimarães) Rosa, Clarice (Lispector), Machado (de Assis). E gosto muito do seu conterrâneo Dalton Trevisan. Dos livros mais novos prefiro O Velho Testamento.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros