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As contradições de Rimbaud

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No período que passou em Paris, em torno dos 17 anos, Rimbaud conseguiu algum respeito literário mas não deixou boas lembranças entre muitos dos intelectuais da época; mais por conta de sua excessiva juventude e atitude rebelde e impudente nas reuniões de que participou do que necessariamente por sua obra, pequena e praticamente desconhecida da maioria. Mas enquanto passava seus últimos anos de vida na África e já tinha, havia muito, parado de escrever, seu nome se fazia na Europa, em grande parte graças a Paul Verlaine — embora eles não mais se falassem — que de posse de muitos de seus textos fez todo o possível para vê-los publicados.

Naquele momento, no vácuo criado pela morte de Victor Hugo e Baudelaire, a poesia francesa definiu muito do que seria a literatura do século seguinte. Os novos autores já estavam por ali, procurando ocupar os espaços recém-abertos com obras novas, inúmeras revistas e meetings poéticos.

Em 1883, Verlaine publicou Les Poètes Maudits, um texto crítico e de apresentação de pequenas antologias, que não apenas definiria nomes importantes da época como acabaria também por fundar essa quase instituição moderna que é o "poeta maldito". Rimbaud é posto entre Corbière, Mallarmé, Villiers de l'Isle Adam e o próprio Verlaine (sob o pseudônimo de Pauvre Lelian), e os comentários do autor somados à pequena amostra de poemas são suficientes para que sua fama se consolide e que seu nome suporte a passagem do século.

O início da formação de sua fortuna crítica foi tumultuoso e contraditório. Isabelle Rimbaud, irmã do poeta e católica convicta, fez esforços consideráveis, incluindo mutilação, destruição e ocultação de partes da obra, para que seu irmão entrasse para a história, sim, mas segundo suas convicções religiosas. Essa atitude, obviamente não respeitada por Verlaine, criou uma oposição que chegará alguns anos depois a um duplo Rimbaud: um católico, da leitura de um Paul Claudel e de outros estudiosos, que enxergavam em "Uma Temporada no Inferno" a mais substancial afirmação moderna do cristianismo; e um outro que permaneceu, o herético que será escolhido, por exemplo, pelos surrealistas.

E esse é só um dos exemplos das contradições em que Rimbaud se meteu. Vivo, não mediu meios para viver todos os opostos possíveis. Morto, sua biografia e sua obra alimentaram vários caminhos opostos. Mallarmé, que definiu o poeta como alguém com rosto de anjo e mãos de lavadeira, foi secundado por Leyla Perrone-Moisés, em Inútil Poesia: "O 'anjo' era porco e mal-educado; o 'rebelde' era o primeiro da classe; o 'marginal' pedia a aprovação do establishment literário, que o reconheceu e homenageou de imediato; o 'comunista' teria apenas usado essa máscara para fins interesseiros; o 'aventureiro' posterior era um empregado exemplar, obediente, poupador e bastante aborrecido com a vida que levava; o 'inimigo da família' compactuava com a mãe-megera para sabotar o casamento do irmão com uma mulher inconveniente...". Longe de atrapalhar, essas incongruências só o ajudaram, talvez porque ao mesmo tempo em que ele revelava o aborrecido e uniforme mundo burguês, se prestava para ser o rebelde radical que nem todos queriam ou podiam ser. E isso foi, em alguma medida, poeticamente romântico.

Ao lado de Lautréamont, poeta ainda mais desconhecido que ele durante o 19, Rimbaud é citado como referência no primeiro Manifesto Surrealista, de 1924. Suas biografia e bibliografia são igualmente responsáveis por isso: "Rimbaud é surrealista na prática da vida e no resto", afirma André Breton. Daí para frente, sua obra será aos poucos estudada e integrada completamente ao cânone modernista.

Em 1931, em O Castelo de Axël, Edmund Wilson tenta entender a poesia moderna e vê-se compelido a buscar em Rimbaud e Villiers de l'Isle Adam algumas das origens da explosão poética que "explicaria", ou teria possibilitado, obras como as de Gertrud Stein, Eliot e Joyce. Para um leitor de língua inglesa como ele, essa pesquisa possuía um sentido maior, pois não era apenas uma tentativa de compreender influências, antepassados e sucessores literários, mas de tentar explicar o que havia na literatura francesa do final do século 19 que foi descoberto por esses que seriam os primeiros grandes autores do século 20. E é claro que ele não chega a uma conclusão única (na verdade afirma que tudo estava lá, na poesia inglesa, mas com menos estrondo...), mas, ainda uma vez, a vida de Rimbaud é relevante, por representar uma opção diferente da que fez a maioria dos outros autores — e Wilson também o compara especialmente ao personagem recluso de Villiers, Axël —, cloróticos que renunciaram ao mundo exterior.

Se a vida o catapultou para o panteão dos mitos durante o século 20 (seu rosto pode ser encontrado em camisetas ao lado do revolucionário Che Guevara ou do guitarrista Jimi Hendrix), sua obra se garantiu entre os autores que forjaram a liberdade poética desse tempo. Mesmo Mallarmé já tinha falado da força — entre o perverso e o exótico — do seu verso. De modo geral o enquadraram entre os simbolistas, principalmente por violentar o ritmo e a métrica da poesia francesa indo até o poema em prosa: "Iluminações" e "Uma Temporada no Inferno" são seus textos mais violentamente modernos. Nessas obras, no entanto, a clareza e a lógica sintática é que seriam abandonadas, atendendo ao chamado da época: "dar um sentido mais puro às palavras da tribo".

Nesse processo de corrupção da linguagem aparecem a despersonalização moderna: o "eu" que é um outro, a defesa do feio como motivo de arte, o tratamento imoderado entre imaginação e realidade, a cidade como espaço preferencial, a ridicularização das tradições. A caracterização de simbolista não é unânime: apesar do poema em que dá cores às vogais, seguindo um pouco a ideia das correspondências de Baudelaire, a poesia de Rimbaud não cabe facilmente em nenhuma categoria. A coerência que ele talvez tenha para oferecer seja o violento e idêntico vigor com que regeu ora a vida, ora a obra.

Sandra M. Stroparo é professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná.

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