Prestes a completar 61 anos, no próximo dia 16, Ivan Lins poderia muito bem ficar no seu canto, deitado sobre os louros do sucesso. Afinal, ao longo de quase três décadas de carreira, ele colocou pelo menos uma dezena de canções no rol dos clássicos da MPB, construiu uma sólida reputação no exterior e até ganhou um prêmio Grammy. Mas a acomodação, definitivamente, não é a sua praia.
Em 1991, já estabelecido como um medalhão da música brasileira, Ivan deu um passo ousado ao fundar, em sociedade com o compositor Vitor Martins, uma das primeiras gravadoras autônomas realmente organizadas do país. Batizada de Velas, a companhia não só impulsionou o mercado independente como lançou nomes do quilate de Chico César, Lenine e Guinga, entre outros. Como se não bastasse, o artista também se tornou uma das figuras mais atuantes da classe musical. Foi um dos cabeças do movimento pela numeração de CDs no Brasil (que deixou o balanço das multinacionais do disco menos nebuloso) e, agora, batalha pela criação de uma frente parlamentar pró-música. Com um disco novo na praça, Acariocando, Ivan conversou sobre cultura, tecnologia e política com a reportagem do Caderno G.
Como outros artistas fizeram recentemente, você também gravou um disco em homenagem ao Rio de Janeiro. É uma forma de reação à situação calamitosa da cidade?
Quanto mais a cidade sofre, mais a gente quer defendê-la. Acho que existe um sentimento coletivo, pelo menos entre aqueles que estão pensando a cidade, de melhorar a imagem dela e defendê-la da mediocridade da administração pública, que só vem piorando de 50 anos para cá. Você vê o disco novo do Chico Buarque, o que a Joyce fez com o Dori Caymmi... As pessoas voltaram a falar mais do Rio de Janeiro, os movimentos de periferia estão saindo em defesa dessa região tão abandonada. A própria cidade começa a reagir, sem ninguém precisar ligar pra ninguém.
Como você vê o atual momento de indefinição da indústria fonográfica, motivado pelo avanço da internet e de outras tecnologias de ponta?
Ninguém sabe direito para onde isso vai. Mas o fato é que a informática veio libertar os artistas de certas correntes em que a indústria os colocou. Falo dessa coisa de você ter de passar obrigatoriamente por uma novela para ter uma música conhecida, de pagar jabá no rádio e na televisão para tocar. A internet veio para abrir novos canais de divulgação, produção, informação. E de formação também, porque se aprende muito com ela. É claro que as questões do direito autoral e da pirataria ainda são uma grande incógnita. Procuram-se soluções para criar uma política mais correta em torno desses problemas, mas tudo ainda é insuficiente.
Qual será o futuro das grandes gravadoras multinacionais?
Acho que a indústria do disco vai acabar. Ela já assinou seu atestado de óbito. Em dez anos, não vão existir mais gravadoras. Elas serão gestoras de um catálogo enorme de obras, mas não serão mais donas das músicas que serão produzidas. Todo artista será independente, dono de sua própria música. Tanto no sentido autoral quanto no fonomecânico. Essas empresas serão meras prestadores de serviços, trabalharão com marketing e distribuição. Isso enquanto ainda houver distribuição física, porque quando todo mundo começar a só comprar pela internet, as lojas de discos vão acabar. Vai ser só por correio ou online mesmo, por MP3.
Mas se as gravadoras passarão a se ocupar exclusivamente do marketing, o jabá vai continuar...
Isso vai perdurar até que as novas tecnologias não custem tão caro para classes sociais mais pobres. Quando todos tiverem acesso à internet, você vai ter muito mais opção na tela do computador do que na televisão. As rádios digitais, com inúmeros canais, também serão um avanço nesse sentido. Vai ser como colocar uma pessoa que acabou de tirar a carteira de motorista num carro da Fórmula 1. A tecnologia está andando muito mais rápido do que a nossa capacidade de apreensão.
Hoje o mercado independente é uma realidade no país, com novos selos autônomos surgindo todos os dias. Como foi sua experiência à frente da Velas, uma das pioneiras no ramo?
Foi uma experiência romântica. De querer mudar o mundo e não conseguir mudar nada. Mas nós conseguimos dar um impulso na área independente, porque depois fomos seguidos por vários outros grupos. Só que a gestão de uma gravadora dentro da realidade brasileira é muito difícil. Saí da Velas porque bati de frente com essa realidade, não queria ser patrão dos meus colegas. Mas hoje a idéia não é mais essa. Os selos independentes vão acabar se tornando selos individuais, cada artista será seu próprio selo. Se houver 200 mil artistas, serão 200 mil selos, administrados por empresas que podem até ser as grandes multinacionais. Mas o artista será dono da própria musica, em todos os sentidos. Esse novo disco, por exemplo, já saiu pelo meu selo, o Oilua. O disco é licenciado para a EMI, que o distribui nas lojas, mas o copyright é meu. Depois de dez anos, o produto volta para a minha mão. Posso até lançá-lo por outra companhia.
No dia 30 de maio, a Câmara dos Deputados promoveu um seminário para debater a música brasileira. Você foi um dos participantes do encontro, ao lado de parlamentares e outros artistas. Qual a proposta desse movimento?
A idéia é colocar a música brasileira no espaço que ela deveria assumir. Como o país quer ser de primeiro mundo se a sua política de educação e cultura é de quinto mundo? A gente sabe que um dos recursos culturais mais fortes do Brasil é a música. Ela deveria ser um fator estratégico, mas essa consciência não passa pelo nível medíocre dos nossos parlamentares. Nem todos são assim, lógico, existe uma minoria bem informada e consciente. Então a gente está criando uma frente parlamentar pró-musica, formada por políticos que entendem que a música é também uma fonte de renda muita grande para o país. Na Inglaterra, por exemplo, a música é tratada como um importante produto de exportação. Nos anos 60, os Beatles foram condecorados pela Rainha porque as vendas de suas músicas chegaram a 20% do PIB do país. É muito dinheiro.
A nossa música é uma das boas imagens que este país tem lá fora. Isso não é usado de maneira nenhuma pelo Estado, que a ignora e a subdimensiona. Além disso, a música, assim como o esporte, faz parte do que eu chamo de criatividade espontânea do brasileiro. E vou além: acho que a pedagogia no Brasil deveria se desenvolver a partir da música e do esporte. É um caminho para a gente voltar às nossas origens vocacionais.
Que avaliação você faz da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
Acho que o Gil pegou uma bomba, um pepino. Mas ele gosta desse tipo de coisa. O Ministério da Cultura é muito abrangente, trabalha com música, cinema, patrimônio histórico, manutenção de calendários folclóricos... E a verba para a cultura é ridícula. A política cultural do PT ainda está em 1942, a mentalidade é muito atrasada. Mas acho que o Gil e a equipe dele, vinda do PV, têm uma mentalidade mais moderna, são muito capazes. Eles tiveram que priorizar as verbas para coisas mais essenciais para o país.
Mas há uma certa bronca ética com o ministro, que estaria capitalizando em cima do cargo...
As pessoas não deveriam olhar por esse lado, porque essa é a profissão dele. O Gil precisa continuar sua carreira. A mulher dele, que é empresária do ramo, não pode parar de trabalhar, ainda mais num país como o Brasil. Antes de ser ministro, o Gil estava fazendo show de voz e violão por aí para pagar as contas. Mas na nossa classe tem muita inveja, vaidade. Acho tudo isso exagerado. Mesmo que ele não quisesse, seria impossível não capitalizar. O Gil é um homem muito culto, de boa índole, de boas intenções. Defendo ele até o fim. Entre os ministros que estão atuando, ele é uma raridade. E faz milagre, faz mais do que é possível.
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