As veias abertas da Itália

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Em novembro de 2010 – quatro anos após ser jurado de morte pela máfia napolitana, Camorra, portanto – o escritor e jornalista Roberto Saviano, que ganhou fama mundial com seu esclarecedor e atemorizante livro Gomorra, sobre a referida máfia, produziu uma série de quatro especiais para a televisão, na emissora pública italiana RAI 3, intitulada Viene Via con Me (na tradução, vem embora comigo).

Apesar do nome piegas, a proposta era séria, ainda que com tons muito mais leves. Saviano fazia crônicas sobre a Itália dos dias atuais, a pátria de Berlusconi e sua péssima administração, da máfia institucionalizada, dos mecanismos burocráticos mal regulados que estão implodindo a economia do país a médio ou curto prazo, enfim. Histórias que, a exemplo de seu mais famoso livro, ninguém tinha particular interesse ou gosto por ouvir.

É justamente este o ponto central do amargor que Saviano carrega de maneira sutil em sua escrita, mas que explicita em alguns momentos de A Máquina da Lama – Histórias da Itália de Hoje, livro que reúne as narrativas de Viene Via con Me e outras. A apatia do povo italiano, a falta de engajamento e, o que é pior, a difamação do público sobre o mensageiro das más notícias que Saviano se tornou ferem o autor mais do que o próprio medo da ameaça de morte iminente que mesmo ele não nega tardar a se concretizar. Malquisto em Nápoles, sua terra natal, e não só pela Camorra, Saviano ganha a antipatia do povo italiano por fazê-lo admitir sua própria covardia, que permite o despejo ilegal de toneladas de lixo tóxico pelas cidades da região, que não assume um lado na luta clara contra um mal infiltrado cada vez mais poderoso graças à estratificação e à alienação social.

Mas Saviano aborda mais do que a questão da máfia em A Máquina da Lama. Fala, por exemplo, da eutanásia de Piergiorgio Welby, diagnosticado com uma distrofia muscular progressiva que aos poucos o paralisou completamente, ou do terremoto em L’Aquila que destruiu a Casa do Estudante, onde se abrigavam mais de 120 universitários, quase todos mortos na tragédia. Histórias marcantes que estão enraizadas no passado recente do país, que Saviano sempre termina com uma pequena moral em forma de discurso. Nada muito rebuscado, nada muito inflamado, apenas contundente o bastante para tocar no que talvez seja o fio condutor de todos os textos que produziu para a série: o chamado para a verdadeira unificação italiana.

A Itália é, afinal, um país recente, se pensarmos que o resultado do Risorgimento, que transformou os estados independentes em um único país sob o decreto de Vitor Emanuel II, rei do Piemonte e da Sardenha, teve seus 150 anos comemorados no ano passado — quase quatro décadas após a nossa independência. Porém, se o país se uniu geopoliticamente, o pensamento continuou individual. Saviano clama para que os italianos deixem de pensar que os problemas do sul não concernem ao norte, e vice-versa, já que é neste individualismo que as grandes máfias se fortalecem – algo não muito distante da realidade brasileira, diga-se.

Para a edição nacional de A Máquina da Lama, aliás, Roberto Saviano escreveu um prefácio exclusivo, em que inocentemente deposita no nosso país a fé em ajudar o velho continente a se livrar da corrupção. Diz: "Sonho algum dia ir a essa terra maravilhosa e difícil, cuja relação de fraternidade com a Itália não está somente no enésimo desafio de futebol, mas sobretudo na capacidade de intercambiar referências comuns, na esperança de combater, mediante estratégias compartilhadas, a economia criminosa". Pra se ver em que pé andam as coisas por lá. GGG

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